A faraona Hatchepsut

FÈVRE, Francis. Faraona de Tebas: Hatchepsut, Filha do Sol. Tradução de Gilda Stuart. São Paulo: Mercuryo, 1991.
[La Pharaonne de Thèbes – Hatchepsout, Fille du Soleil. Presses de la Renaissance, 1986.]

faraona_de_tebasFaraona de Tebas: Hatchepsut, Filha do Sol não é um romance, tampouco uma obra estritamente acadêmica sobre o assunto; está mais para biografia, mas creio que a definição mais adequada é a de “documentário”, bem ao estilo do que ficou comum nos dias atuais em programas de TV sobre história: com base no conhecimento alcançado sobre determinada época, local e povo, traça-se uma visão panorâmica (às vezes aprofundada em certos aspectos) da época ou personagem estudada, tentando-se reconstituir, inclusive com dramatização, fatos históricos e preencher lacunas.

É o que faz nesta obra o historiador francês Francis Fèvre, autor de outros livros, incluindo-se dois romances sobre o Egito antigo. A partir do que se sabia, em meados da década de 1980, sobre a rainha-faraó (ou “faraona”) Hatchepsut, ele reconstitui a época, a cultura, as festas religiosas, a vida na corte, as intrigas palacianas e arrisca lançar hipóteses sobre a vida ainda não bem conhecida dessa soberana da XVIII dinastia egípcia.

Algumas digressões do autor servem para situar o Egito no contexto do Oriente Médio daquela época; outras descrevem rituais religiosos, o embalsamamento e sepultamento dos monarcas; o trabalho dos camponeses e dos operários das obras do Estado; o ritmo das cheias e vazantes do Nilo, fecundando a terra negra que dava nome ao país de Kemit; ou ainda traçam analogias com outras civilizações milenares, como a chinesa, além de recuperar para os dias atuais a importância de Hatchepsut para o Egito antigo.

A cronologia possivelmente mudou com as descobertas mais recentes (algo comum quando se trata de fatos ocorridos há tanto tempo e ainda muito nebulosos), mas atenho-me à do texto que comento e à grafia dos nomes egípcios citados pelo autor – baseados na ortografia francesa, o que foi em parte conservado na tradução (a forma mais comum é “Hatshepsut”).

Hatchepsut teria nascido por volta de 1535 a.C. e morrido com cerca de 50 anos de idade, possivelmente em 1484 a.C., após reinar por 20 anos no lugar de seu enteado Tutmósis III (ou Tutmós, Tutmés). Como Tutmósis era muito pequeno, Hatchepsut assumiu o trono após a morte do meio-irmão e marido, Tutmósis II, fazendo-se representar como homem em todas as situações. Não se tratava, portanto, de uma mulher ocupando o trono do Egito, como ocorreu algumas vezes durante a menoridade do herdeiro, mas de um faraó que era mulher, com todos os títulos, dignidades e indumentária do cargo (inclusive a barba falsa ou postiça). Após sua morte, assume definitivamente o trono seu enteado, Tutmósis III, filho de Tutmósis II com uma concubina. Tutmósis III reinou por cerca de 35 anos e foi o faraó mais vitorioso do Egito, e com ele o país alcançou a extensão máxima de sua fronteiras, perdidas ou conservadas a duras penas, quando possível, por seus sucessores.

Apesar de que não se trata de um romance, o autor vale-se da técnica do discurso indireto livre para entrar nas mentes das personagens históricas, e os pensamentos dele misturam-se com os das personagens que reconstitui. Às vezes decorrem disso certos anacronismos, ao que parece – intencionais ou fruto do mergulho do autor na “mente” reconstituída de suas personagens? Fèvre reconstitui as personagens históricas e entra em suas mentes, tentando saber o que pensavam, seus anseios e frustrações.

Descreve e/ou sugere a formação de Hatchepsut e seu casamento com o meio-irmão; a altivez e a consciência de ter sido talhada para o exercício do poder; o desgosto de ter nascido mulher num contexto de domínio masculino; a possível frustração de ver, pela terceira vez, um bastardo no trono do Egito (o autor levanta a hipótese de que Tutmósis I era filho bastardo de Amenófis I, que o teria casado com a filha legítima para conservar o sangue divino dos faraós – o casamento entre irmãos era fato comum nas casas reais egípcias; a esposa de Tutmósis III era sua meia-irmã, filha de Hatchepsut). Quanto a Tutmósis III, seu fortalecimento como comandante militar, enquanto espera o momento de reinar; o ódio àquela mulher que não lhe permite ocupar o trono que lhe é de direito; o alívio e satisfação com sua morte; a posterior decisão de apagá-la da história.

O autor tenta também responder a algumas questões: Teria Hatchepsut tentado iniciar um matriarcado no Egito, instituindo a possibilidade de uma mulher ocupar o trono após ela (sua filha Neferurê)? Se tentou isso, não o conseguiu. Teria havido uma relação amorosa entre Hatchepsut e Senenmut, seu vizir e arquiteto, construtor do maravilhoso templo de Deir-el-Bahari? Se não, por que Senenmut se fez representar no templo de sua rainha? Como ela teria conseguido reinar como faraó por tanto tempo (cerca de 20 anos ou um pouco mais)?

Fèvre defende que o reinado de Hatchepsut foi um período de estabilidade, de fortalecimento interno, de apego às tradições e à religião, mais voltado à diplomacia e ao comércio do que à armas; depois dela o Egito se abre para o mundo e se torna potência militar sob Tutmósis III, o Grande.

Após sua morte, Hatchepsut começa a ser apagada da história. Seus sucessores destroem suas estátuas, apagam seu nome e imagens dos templos que ela construíra, riscam seu nome dos registros; mas nem tudo conseguiram destruir, e o que restou ajuda a reconstituir, pelo menos em parte, sua vida e importância para a história egípcia.

O texto apresenta alguns erros tipográficos, o que não atrapalha a leitura. Destaco o fato de aparecer em todo o texto a forma amessida (nome da XVIII dinastia, fundada por Ahmósis I, bisavô de Hatchepsut); a forma correta em português é améssida, análoga a raméssida (designativo da XIX dinastia, fundada por Ramsés I).

Apesar de publicado originalmente há quase  30 anos, é livro ainda atual e que se lê com grande proveito e prazer.

Santarém, PA, 21/1/2015. Editado em 28/2/2015.

Cama, mesa e banho

DIBIE, Pascal. O Quarto de Dormir: um estudo etnológico. Tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
[Ethnologie de la Chambre a Coucher. Éditions Grasset & Fasquelle, 1987.]

dibie_quartodedormirO Quarto de Dormir: Um Estudo Etnológico de Pascal Dibie é uma leitura muito instigante. Li-o há uns 10 anos, com muito interesse, e gostei. O autor considera-se “amante da preguiça” e, quando lhe é infiel, produz suas pesquisas, como este livro, em que traça um estudo histórico e etnológico de como o ser humano tem dormido até hoje, desde as cavernas, enrolado em peles, até as camas modernas de hoje (ou da década de 1980, quando a obra foi escrita).

Assim, o autor debruça-se sobre o sono de nossos ancestrais das cavernas (boa proteção contra o frio e os animais), sobre esteiras, nas primeiras camas, em nichos em paredes, tatâmis, além da origem dos colchões e edredons, até as extensões do quarto de dormir, que mudou de natureza e foi incorporando outras funções e apetrechos, como o banheiro.

A posição do quarto dentro da casa, do porão ao sótão (por exemplo, atrás da cozinha, para ser aquecido); as relações do quarto com os demais cômodos da casa, os comportamentos de “cama, mesa e banho”, o surgimento das privadas (chamadas no início “cadeiras de latrina”, pois se tratava de cadeiras com uma abertura no assento, embaixo da qual se punha um vaso para recolha dos dejetos) – tudo isso é comentado, e se vê a história do comportamento de parte da humanidade dentro de casa, principalmente no quarto.

Nem a nossa popular rede, herdada dos indígenas, foi esquecida – o autor a experimentou e apreciou!

Acrescente-se que o estudo abrange também tudo o que se pode relacionar com esta parte tão importante da casa: do comportamento social familiar através dos tempos até o surgimento dos relógios despertadores…

Uma leitura que recomendo, de preferência numa poltrona bem confortável ou numa rede bem preguiçosa, não necessariamente no quarto de dormir.

Texto da contracapa:

Simples canto de caverna coberto de peles de animais ou suntuoso aposento de palácio com grande leito de dossel, o quarto de dormir foi e continua sendo a peça mais importante da habitação, onde o homem passa pelo menos a terça parte de seu tempo. Ao contar a história dessas quatro paredes – testemunhas dos atos mais íntimos do ser humano – o etnólogo francês Pascal Dibie constrói um estudo original, em que aponta as diversas relações entre o objeto de sua análise e os mais variados aspectos culturais nos quais se inserem, como a religião e a sexualidade, a arquitetura e a decoração.

Santarém, PA, 27/2/2015. Editado em 26/4/2016.

Enquanto alguém ainda se lembrar destes homens…

RASPAIL, Jean. Quem se Lembra dos Homens? São Paulo: Globo, 1989.
[Qui se Souvient des Hommes, 1986.]

raspail_quemselembradoshomensLi-o há cerca de 10 anos e fiquei bastante impressionado com a história deste povo dos confins de nosso continente.

Quem se Lembra dos Homens? de Jean Raspail é um livro fantástico que, numa combinação de estudo antropológico e narrativa (semi)ficcional, tenta reconstituir a história de um dos mais singulares povos que já habitaram as Américas, o qual chamava a si mesmo “os homens” – como muitos outros grupos humanos em todos os tempos.

Numa migração cuja lembrança se perdeu na noite da história, os alakalufs (como são conhecidos hoje) chegaram a um dos extremos do mundo, a Terra do Fogo, e lá viram passar os conquistadores do Sul da América, fugindo deles como de todos os povos com que toparam, tentando apenas sobreviver.

Uma leitura emocionante, que ninguém fará sem refletir profundamente, depois da última página, sobre a Humanidade e sua(s) História(s).

Trecho da orelha do livro:

E eles chamavam a si mesmos de Homens. Haviam chegado àquele extremo da Terra que, bem mais tarde, foi nomeado Terra do Fogo – ao término de uma migração tão longa que já a haviam perdido na memória. Empurrados incessantemente por novos invasores, tinham atravessado um continente e milênios na ignorância e no medo. Haviam se estabelecido num lugar onde, ao que tudo indicava, ninguém poderia alcançá-los, de tão cruéis que eram o céu, a terra e o mar naquele inferno austral. Foram talvez um povo, depois não passaram de clãs, de famílias. Um dia, e será amanhã, não existirá mais ninguém além de Lafko – Lafko, filho de Lafko, filho de Lafko, desde o início dos tempos -, o último do Homens, aquele que vemos, na primeira e na última página deste livro, tentando encontrar na tempestade a praia onde ele poderá morrer, sob os olhos de Deus, solitário.
Neste intervalo entre o sonho de Henrique, o Navegador, a aparição dos navios de Magalhães e o desaparecimento dos Homens, estes “selvagens” viram a história passar e submeteram-se a ela. Amanhã, Lafko vai se perder na noite.
Quem se lembra dos Homens? Jean Raspail, após ter encontrado uma das últimas canoas dos alakalufs (esta é a denominação moderna deste povo), não os esqueceu. Neste livro – que, por falta de opção, ele qualifica como “romance”, mas “epopeia” ou “tragédia” talvez fossem mais exatos -, ele recria o destino destes seres, nossos irmãos, que os Homens que os viram hesitaram em reconhecer como Homens.

Santarém, PA, 27/2/2015. Editado em 26/4/2016.

Uma introdução popular às línguas indígenas do Brasil

O homem branco, aquele que se diz civilizado, pisou duro não só na terra, mas na alma do meu povo, e os rios cresceram, e o mar se tornou mais salgado porque as lágrimas da minha gente foram muitas.
Cibae Ewororo (Lourenço Rondon), índio bororo

aryon_linguasbrasileirasApós mais de 5 séculos da chegada dos portugueses à América e do contato dos primeiros europeus com os indígenas da região que hoje conhecemos como Brasil, têm presença cada vez mais constante na mídia brasileira e internacional as questões relativas aos cerca de 200 povos indígenas que habitam o território brasileiro e à necessidade de preservação de sua cultura e tradições, para que eles possam manter sua dignidade como seres humanos e praticantes de uma cultura própria, ainda que, de uma forma ou outra, uns mais, outros menos, estejam eles integrados à “comunhão nacional”, como se costumava dizer ao tempo do marechal Rondon.

As publicações sobre os índios são cada vez mais numerosas e variadas, tratando de seus costumes, organização social, interação com a natureza, ocupação e demarcação de territórios, conflitos com a população não índia, relações com o Estado e a legislação, exploração de riquezas naturais em áreas de preservação, ressurgimento étnico etc.

Quando se trata, porém, de suas línguas, o desconhecimento delas por parte da grande maioria da população brasileira é quase total. Com efeito, os brasileiros nos orgulhamos de habitar um país-continente em que se fala uma única língua. Única? Nada disso: no território brasileiro ainda se falam cerca de 200 línguas indígenas, e muitas delas correm risco de desaparecer, devido à ação, intencional ou não, da sociedade nacional brasileira, seja devido ao desaparecimento de seus falantes (por epidemias, maus-tratos, chacinas, contaminação da água etc.) ou pela pressão “civilizadora”, que leva ao abandono de práticas culturais, entre estas a língua, que deixa de ser transmitida às novas gerações.

Em geral, pensa-se que o índio fala uma “língua enrolada” ou o “tupi-guarani” (que, aliás, nem existe, pois o tupi e o guarani são línguas distintas, sendo o termo tupi-guarani designativo de um grupo de línguas aparentadas); ou se pensa que as línguas dos índios são “simples” e/ou “primitivas” (embora quem assim fale não saiba bem dizer o que vem a ser isso): para essas pessoas, sendo as línguas dos índios muito “simples”, basta juntar algumas palavras de qualquer jeito e pronto — pode-se falar em qualquer língua indígena!

Foi com o intuito de preencher essa lacuna no conhecimento geral das línguas indígenas do Brasil, e acabar com os preconceitos que envolvem o assunto, que o linguista brasileiro Aryon Dall’Igna Rodrigues escreveu o livro Línguas Brasileiras — Para o conhecimento das línguas indígenas. Trata-se de importante obra de divulgação científica, feita por um conhecedor do assunto, um dos principais especialistas em línguas indígenas do Brasil. (Alguns de seus textos estão disponíveis AQUI.)

Nascido em Curitiba, PR, em 1925 e falecido em Brasília, DF, em 2014, Aryon D. Rodrigues doutorou-se pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Foi professor da Universidade de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade de Brasília (UnB), Universidade de Hamburgo, foi pesquisador do Museu Nacional, além de ter ministrado aulas e conferências em diversas outras universidades e centros de pesquisa da Europa, América Latina e Estados Unidos.

Neste seu livro, Rodrigues traça um quadro geral das línguas indígenas do Brasil. Inicialmente, define o que é uma língua indígena e mostra suas principais características, comparando-as com as das línguas do Velho Mundo, ditas “de cultura”. Mostra como aquelas línguas se agrupam em famílias e troncos linguísticos, calcula o provável número de línguas indígenas faladas no Brasil no início da colonização portuguesa, faz estudo comparado de vocabulário entre línguas diversas, mostra as transformações sofridas por muitas dessas línguas nos últimos 500 anos.

O segundo capítulo de Línguas Brasileiras trata das línguas da família tupi-guarani, a mais importante do Brasil. Fala do tupi e sua influência na cultura brasileira e faz uma comparação entre o tupi antigo e o guarani, além de outras línguas aparentadas, pelo que se vê que, apesar das enormes semelhanças, trata-se de línguas diferentes, embora com a mesma origem. O assunto continua no capítulo seguinte, em que se estuda o tronco linguístico tupi, de que faz parte a família tupi-guarani, ao lado de outras.

O capítulo 4 é dedicado ao tronco macro-jê, que agrupa línguas como o xavante, bororo, carajá etc. Os capítulos 5, 6, 7, 8 e 9 são dedicados a outras famílias linguísticas menores ou isoladas, como caribe, aruaque, arauá etc.

O último capítulo traz um estudo sobre as línguas gerais que se formaram no Brasil durante a colonização. O tupi antigo desenvolveu-se em dois dialetos muito parecidos, a língua geral paulista e a língua geral amazônica; estas se espalharam pelo Brasil, levada uma pelas bandeiras paulistas (Sudeste e Centro-Oeste), e a outra pelas frentes de ocupação da Amazônia, que adentraram o atual Norte do país partindo do Maranhão. A política portuguesa de proibição do uso das línguas indígenas em favor do idioma português, implantada na América Portuguesa a partir de meados do século XVIII, pelo Marquês de Pombal, foi agravada pela Cabanagem (conflito durante o qual pareceram milhares de seus falantes) e pelo fluxo migratório de brasileiros de outras regiões, falantes apenas do português, o que levou ao quase desaparecimento da língua geral amazônica, restando dela hoje apenas a língua geral moderna ou nheengatu (“língua boa”, em tupi), que se fala ainda no Alto Rio Negro, Amazonas, e circunvizinhanças.

Aryon Rodrigues consegue, com seu livro Línguas Brasileiras, uma dupla façanha: além de informar o leitor sobre a situação das línguas indígenas brasileiras, possibilitando, dentro das limitações de uma obra de divulgação, uma visão geral de sua distribuição no território nacional, ele coloca o leitor a par do que se vem estudando nesse campo de trabalho, e fornece copiosa bibliografia, que pode orientar pesquisas futuras dos que se deixam cativar por esse importante ramo dos estudos linguísticos.

A linguagem da obra é simples, sem muitos termos técnicos ou transcrições fonéticas de difícil compreensão; ela pode ser lida tanto por gente especializada quanto por leitores comuns não iniciados em linguística. A meu ver, este livro é uma formidável contribuição à questão das línguas indígenas, seu estudo e conservação. É obra de leitura obrigatória para todos os que se interessam por assuntos ligados à linguagem ou à cultura geral brasileira.

A época em que vivemos assiste a grandes transformações nas relações entre os indivíduos e os grupos, e discutem-se as transformações por que passa o Brasil, com importantes efeitos na vida de seus cidadãos e no novo papel de nosso país no cenário mundial; a nova dinâmica social leva a novas reflexões sobre a formação de nosso povo e nossa cultura, e os índios brasileiros têm presença constante nessas discussões, porquanto, juntamente com outros grupos, atravessam um processo de ressignificação de sua condição de brasileiros.

Assim, tendo os índios uma participação tão importante na formação do Brasil, ler livros como este e inteirar-se de parte dos problemas atuais (mais precisamente os linguísticos) dos indígenas é uma forma de conhecê-los um pouco melhor e compreendê-los.

A primeira versão deste texto esteve disponível entre 1999 e 2006 em http://www.napoleao.com, sítio do extinto Curso de Português e Latim do Prof. Napoleão Mendes de Almeida. Republico-o agora, com algumas correções, atualizações e acréscimos. Apesar de tratar de uma obra de meados da década de 1980 e cuja quarta edição saiu há mais de 10 anos, creio ser esta resenha ainda de algum proveito para o público leitor.

Santarém, PA, 4/5/2012. Editado em 25/2/2015.

A Dama de Preto

A Dama de Preto (La Nigra Virino)

Traduzido do sueco para o esperanto por B. G. Jonson.
Traduzido do esperanto por Júlio César Pedrosa.

Durante a viagem que fiz, há não muito tempo, de Chicago a Nova Iorque, percebi, quando despertei de manhã, que o trem tinha parado. O garçom informou que já estava parado havia uma hora e meia. Vesti-me e, quando fui para fora, descobri que estávamos junto a uma pequena estação, no campo. Entrei no vagão-restaurante e tomei o café da manhã; depois saí a passear pela escalinata.

Em cima da locomotiva, o maquinista estava sentado só, aguardando. Parei e tagarelei por algum tempo com ele a respeito da máquina. Quando lhe ofereci um charuto, que ele aceitou e agradeceu, pediu-me que entrasse na pequena cabine de sua locomotiva.

O chefe, um homem belo e grande, na idade de 40 anos, explicou-me o uso das distintas partes da máquina. Tudo o que poderia estar apenas polido, brilhava como o sol; pois que os chefes de locomotivas são tão orgulhosos, quando suas máquinas estão ornamentadas, quanto as donas de casa, quando as salas destas estão arrumadas.

— Que enfeite é este? perguntei, apontando para algo que se assemelhava a um inseto e, enquadrado numa moldura dourada, estava pendurado na parede. O chefe riu. É menos um enfeite que uma lembrança, disse ele; pendurei-o aqui porque ele salvou minha vida e a de 250 outras pessoas.

— Como então um inseto pode salvar a vida de pessoas? perguntei.

— Vou contá-lo a você. Temos muito tempo até o fim da viagem.

Sentei-me no lugar do foguista ausente e preparei-me para ouvir.

— Aconteceu há não muito tempo, há um ano, na primavera. Eu viajava neste mesmo caminho, como agora, e tinha esta mesma máquina, como agora — a querida 499. Meu foguista era o mesmo que eu tenho agora — Jim Moode. Jim é um excelente rapaz, mas muito inclinado a crer em espíritos, sonhos e premonições. No início eu ria de sua imprudência, mas agora eu já não zombo dele tanto assim — desde quando eu vi a dama de preto.

Eu precisava partir de M. por volta da uma da madrugada e chegar a S. às seis horas. Nessa madrugada soprava um terrível vento e a chuva caía aos cântaros desde a noite. Quando cheguei ao pátio das locomotivas, o vendaval estava ainda mais terrível.

Quando Jim e eu estávamos a caminho da estação com a locomotiva, ele disse: — Teremos uma viagem infeliz, Frank; gostaria que nós já estivéssemos em segurança em S.

Eu ri e perguntei: — O que o amedronta assim esta noite?

— Sinto que alguma coisa vai acontecer, disse.

A bem da verdade, eu mesmo me sentia um pouco medroso também.

A composição que eu deveria conduzir era comprida, bem pesada, e consistia quase que somente de vagões de passageiros. Fiquei nervoso com a ideia de ter sob meus cuidados e responsabilidade tantas centenas de pessoas.

Ria eu de mim mesmo por minha covardia, quando uni a locomotiva aos vagões; depois a vistoriei e vi que tudo estava pronto. Soou o alarme e partimos através do vendaval. A escuridão era impenetrável, somente da lanterna da frente da locomotiva era lançada luz elétrica para diante. Jim alimentava diligentemente o fogo e mantinha a mais alta pressão do vapor, e nós íamos em frente como Fúrias.

Na primeira estação, na qual paramos para recolher água, eu examinei com detalhe se estava tudo em ordem, e Jim vistoriou a lanterna. Estava tudo certo, e continuamos a viagem.

A escuridão fez-se, se isso é possível, mais densa. A chuva caía ainda torrencialmente. Subitamente eu vi, através da chuva e da névoa, deslizando à nossa frente, uma gigantesca figura feminina, envolvida numa longa capa preta, a qual voava em meio à ventania. Ela lançava os braços para a frente e para trás, até que desapareceu.

Fiquei totalmente emudecido de admiração e esqueci-me de fazer sinal a Jim, que estava diante da fornalha. Quando ele voltou o olhar, gritou: — Ó Frank! O que foi? Você olha como se tivesse visto um espírito!

Eu nada respondi. Meus pensamentos ocupavam-se da estranha figura que eu tinha visto.

Estávamos então perto de Rock Creek, onde uma ponte passa sobre um profundo rio.

Fiquei mais nervoso do que antes. Viajávamos rápido, e um sinal fora enviado à estação de Rock Creek, que distava apenas uma milha da ponte. Quando passamos pela estação, ouvi Jim gritar. Corri até ele e vi-o tremendo de terror. Ele apontava para fora, na escuridão, e quando olhei, fui eu mesmo tomado pelo terror.

Lá, sobre o relógio, via-se aquela mesma mulher gigante, como antes, ora quieta, ora na mais selvagem dança. — Frank, murmurava Jim com dificuldade, não passe sobre a ponte! Pelos céus, não faça isso! Não passe antes de saber se tudo está em ordem!

Não pude resistir ao pensamento de parar o trem e abrir ao máximo possível a ventilação. Mal paramos, pude ouvir a água que estrondava em Rock Creek bem diante de nós. Quando saí da máquina, o condutor veio ao meu encontro.

— O que foi? O que foi? perguntou. Senti-me confuso. Eu já não via nenhuma mulher gigante. Nós não conseguíamos ver a mais de um ou dois metros adiante sobre os trilhos. Eu nada via, mas disse: — Não sei o que era, mas pareceu-me ter visto um grande espírito negro que estendia os braços e me fazia sinal para que não prosseguisse. O condutor olhou-me todo admirado.

— Você está louco, Frank? disse. Quase não se poderia acreditar. Mas já estamos perto do rio, e podemos verificar.

Pegamos nossas lanternas e seguimos adiante. Jim recebeu a ordem de vigiar a máquina. Mal demos algumas dezenas de passos, porém, e paramos, petrificados de terror. Diante de nossos pés havia uma profunda garganta, onde o rio rugia, engrossado pelas chuvas da primavera. Quando nos viramos, vimos a figura feminina de preto, que dançava em selvagens rodopios. O condutor olhou adiante para o abismo, depois para mim.

— Foi isto que você viu, quando parou o trem?

— Sim.

— Alguma outra coisa, além da sorte, salvou-nos esta noite.

Voltamos devagar ao trem, cheios de pensamentos e com a alma pesada. Diversos viajantes vieram ao nosso encontro. Entre eles se encontrava um jovem de 18 anos, vindo de Chicago, que era mais rápido de pensamento do que nós. Quando ele viu a mulher de preto, foi até a locomotiva e olhou dentro da lanterna que estava lá.

— Eis aqui nossa dama de preto! Disse o jovem de Chicago.

E lá estava de fato esse mesmo inseto que você vê agora sob esse vidro. Quando abri a lanterna, ele voou em direção ao refletor.

Eis aí toda a história, meu senhor. Quando o inseto voava diante da luz, ela projetava uma sombra que se assemelhava a uma mulher a agitar os braços. Não sei como ele entrou, mas com certeza foi quando Jim examinou a lanterna, junto da estação de água. Seja como for, isso salvou nossas vidas, pelo medo que me causou aquela mulher vestida de preto.

Eis o motivo de este inseto estar sob um vidro e numa moldura. Isto é para lembrar-me de como fomos salvos através deste inseto. Sim, você o chama acaso — creio eu que ele foi enviado por Deus.

— Tudo em ordem! gritou o condutor, saindo da estação telegráfica com um papel nas mãos.

Jim, o foguista, veio para a máquina e eu voltei a meu vagão.

JONSON, B. G. La nigra virino. In: ZAMENHOF, L. L. (Org.). Fundamenta Krestomatio de Esperanto. 2. ed. Paris: Hachette et Cie., 1905.

Santarém, PA, 25/1/2013. Editado em 24/2/2015. Leia e curta também no Blogspot.

À vaidade do mundo

Salomão retratado por Gustave Doré. Fonte: Wikipedia.
Salomão retratado por Gustave Doré. Fonte: Wikipedia.

Vanitas vanitatum, omnia vanitas.
(Liber Ecclesiastes, I, 2)

“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!” – diz o milenar livro hebraico do Qoheleth ou Eclesiastes, atribuído ao rei Salomão. O filho e sucessor de Davi, já entrado em anos, experiente e no fim da vida, enumera e condena toda a vaidade e os desenganos do mundo, e termina advertindo os homens para a importância do temor de Deus e observância de Seus preceitos (Eclesiastes XII, 13-14).

Mas nem todos concordam quanto aos reais motivos que levaram o sábio rei Salomão, identificado como o próprio (autor do) Eclesiastes, a clamar em palácio contra o orgulho do mundo: em seu romance A Cidade e as Serras, Eça de Queirós põe na boca da personagem Jacinto a explicação do porquê de Salomão se voltar, no fim da vida, à condenação da vaidade e dos prazeres:

Quando descobre esse sublime retórico que o mundo é ilusão e vaidade? Aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se lhe torna ridiculamente supérfluo. Então rompem os pomposos queixumes! Tudo é vaidade e aflição de espírito! nada existe estável sob o Sol! Com efeito, meu bom Salomão, tudo passa – principalmente o poder de usar trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho sultão asiático, besuntado de literatura, a sua virilidade – e onde se sumirá o lamento do Eclesiastes? Então voltará em segunda e triunfal edição, o êxtase do Livro dos Cantares!… (A Cidade e as Serras, capítulo IX.)

Um dos sete pecados capitais, classificados e descritos pela teologia católica na Idade Média – os outros são avareza, gula, inveja, ira, luxúria e preguiça –, dos quais fosse talvez o mais grave, a vaidade, também chamada orgulho ou soberba, parece ter perdido seu posto de primazia para a preguiça, pecado ou comportamento tão pouco aceito hoje, tempos de valorização do trabalho e do esforço, existindo inclusive cada vez mais pessoas viciadas em trabalho: workaholics.

Na Idade Média havia mesmo quem temesse ser considerado vaidoso por seu conhecimento das letras: literatos muito versados nos clássicos grego-latinos esforçavam-se para redigir em baixo latim, mais próximo dos falares populares românicos, ou mesmo nas línguas vernáculas que principiam a estabelecer-se, com o propósito de não serem tidos por orgulhosos de sua erudição, como conta o linguista Benvenuto Terracini, a certa altura de sua obra Conflictos de Lenguas y de Cultura (1).

Já o trabalho era visto como um mal necessário: é preciso trabalhar e alguém precisa fazê-lo. A sociedade medieval europeia era dividida em três grupos principais ou estamentos: o clero (os orantes), a nobreza (os militantes ou guerreiros) e a plebe (os laborantes ou trabalhadores), presa à terra e encarregada de produzir os necessários suprimentos para a sociedade, enquanto os nobres garantiam a segurança do feudo, do reino e da Cristandade e o clero cuidava das coisas do espírito e do bom comércio dos homens com Deus…

Nos dias atuais, porém, a vaidade – ou orgulho ou soberba – deixou de ser tida por comportamento condenável. Sob sua forma prática, o exibicionismo ou ostentação, é posta a público em todos os lugares e situações; nem a Igreja e seus fiéis escapam disso. Nos muros e na publicidade oficial de importante escola católica paraense era possível ler, até certo tempo atrás, a frase DÁ ORGULHO (?!), destacada e em letras garrafais, o que seria coisa de causar espécie a São Jerônimo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santa Clara ou qualquer outro santo, pai ou doutor da Igreja que, embarcado numa máquina do tempo, viesse parar em nossa época e visse tais dizeres na porta de um colégio confessional…

Seja como for, o assunto é bastante recorrente na literatura do Ocidente. No mundo lusófono, produziu um dos mais belos sonetos da língua portuguesa, atribuído ao poeta brasileiro Gregório de Matos Guerra (1636-1696), conhecido como Boca do Inferno:

Desenganos da Vida Humana, Metaforicamente

É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (2)

Este mesmo poema é também atribuído, com ligeiras variações, inclusive de título, ao padre português Antônio da Fonseca Soares (1631-1682), também conhecido como Frei Antônio das Chagas:

À vaidade do mundo

É a vaidade, Fábio, desta vida
Rosa que na manhã lisonjeada
Púrpuras mil com ambição coroada
Airosa rompe, arrasta presumida;

É planta que de abril favorecida
Por mares de soberba desatada,
Florida galera empavesada,
Sulca ufana, navega destemida;

É nau, enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de fénix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa.

Mas ser planta, rosa e nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (3)

Este é apenas um dos exemplos da problemática ligada à obra de Gregório de Matos, que se apresenta como objeto de polêmicas, devido à dificuldade de indicar com precisão a autoria de parte dela. É algo que ocorre também com os poetas Luís Vaz de Camões e Manuel Maria du Bocage e com o escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

Mas, como também dizem as Escrituras: “A quem tem, mais se lhe dará” (Mateus, XIII, 12). Portanto parece ser praxe atribuir a autoria questionável de um objeto a quem já tem muito em seu nome. E assim o catálogo das obras atribuídas a Gregório de Matos, Camões, Bocage e Aleijadinho só segue aumentando!

Coisas da vaidade do mundo…

Notas:
1- TERRACINI, Benvenuto. Conflictos de Lenguas y de Cultura. Buenos Aires: Imán, 1951.
2- In: SPINA, Segismundo. A Poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995. p. 108.
3- In: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/fchagas.htm (ortografia atualizada).

Santarém, Pará, 21/2/2015. Editado em 22/2/2015.

A língua portuguesinha e seus diminutivos

Propaganda da Coca-Cola para a Copa do Mundo de 2014 apelava para o uso do diminutivo por brasileiros. Não falamos português, mas sim portuguesinho:

http://economia.ig.com.br/empresas/2014-04-19/coca-cola-lanca-video-em-que-faz-piada-com-o-jeito-de-falar-do-brasileiro.html

Pois é… Esqueceram-se de dizer que o português não é falado apenas no Brasil; além disso, o uso de diminutivos sem real função de diminuição (ou seja, como “linguagem afetiva”) ocorre em todo o domínio da língua portuguesa, não apenas no português brasileiro. Trata-se de estrutura que herdamos do latim, de que descende nossa língua, pois no latim vulgar (ou popular) os diminutivos tinham grande presença.

Exemplos não faltam: a palavra portuguesa abelha veio do latim APICULA, diminutivo de APIS, “abelha”; ovelha veio de OVICULA, diminutivo de OVIS, “ovelha”; orelha veio de AURICULA, diminutivo de AURIS, “orelha”; agulha veio de ACUCULA, diminutivo de ACUS, “agulha”.

Em latim também se usava o diminutivo para formar nomes femininos: galinha veio de GALLINA, diminutivo/feminino de GALLUS, “galo”.

A falta que não faz um linguista ou filólogo numa hora destas…

Menos personal trainers, mais personal teachers!

Santarém, PA, 19/4/2014. Editado em 22/2/2015.