Livrarias e acepipes

(Foto: WordPress.)

Meu sonho de consumo era ser como essas pessoas que viajam pelo mundo conhecendo livrarias. Ah, as livrarias de Buenos Aires! Ah, a Livraria Lello no Porto!
Certo jornalista brasileiro gaba-se de ter sua livraria favorita em Nova Iorque. Já certo escritor lusófono, ao ouvir o nome de um país ou cidade, lembra-se logo das livrarias que conhece lá…
Já eu conheço livrarias (na verdade, quase todas elas são “sebos”) apenas na cidade de São Paulo, além das ex-livrarias — ou seja, as que deixaram de existir — na cidade onde moro.
Mas, para compensar, tenho minha própria idiossincrasia: quando passo por um lugar que conheço ou me fazem alusão a ele, ou me lembro de uma data, logo me vêm à mente as comidas ou bebidas que saboreei ali ou naquele momento: sanduíche de pernil na Lanchonete Estadão; um pão doce gostoso numa padaria no Largo 13 de Maio, Santo Amaro; suco de uva passa num restaurante libanês; as batidas de um bar já extinto num bairro onde morei; os brigadeiros de uma cafeteria na Ana Rosa; a comida de um restaurante vegetariano no Itaim-Bibi; o primeiro tacacá que tomei (em 2009, na banca de Dona Fausta, em Santarém); o doce de jiló de Caldas Novas; o patê de sardinha, feito por minha sogra, que comi vendo o jogo Brasil vs. Chile da Copa do Mundo de 1998…
Minha esposa diz que tenho memória gastronômica.
Pois é… Cada um com seu super-poder!

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Hititas, Povo dos Mil Deuses

LEHMANN, Johannes. Os Hititas: Povo dos Mil Deuses. Tradução de Carlos Antonio Lauand. São Paulo: Hemus, 1980. 294 pp. (Enigmas e Mistérios do Universo). Título original alemão: Die Hethiter.

OS_HITITAS_1245267970BLi Os Hititas há uns 15 anos (creio que em 1999 ou 2000). Já havia lido, algum tempo antes, o clássico de C. W. Ceram, O Segredo dos Hititas, mas este livro de Johannes Lehmann me deixou uma impressão mais duradoura após a leitura.

Lembro-me de alguns erros tipográficos do texto, além de topar, mais ou menos no meio do livro, com uns períodos gramaticais um pouco confusos, que eu precisei ler e reler para entender melhor; as orações pareciam não se encaixar direito umas nas outras, talvez deslizes da revisão. Mas nada que atrapalhasse a leitura e compreensão da obra em geral.

O livro de Lehmann consta de três partes. Na primeira o autor descreve o processo de pesquisa que levou ao “descobrimento” da civilização hitita, que só se conhecia, até meados do século XIX, devido a alguns versículos da Bíblia. A tradução do relato da “vitória” de Ramsés II sobre os hititas na célebre Batalha de Kadesh; a descoberta de correspondência diplomática trocada pelos egípcios com os hititas; e depois a escavação das ruínas de Hattusa, capital dos hititas, na Anatólia, onde se encontrou uma biblioteca com milhares de tabuletas de argila com escrita cuneiforme em várias línguas – tudo isto contribuiu, no fim do século XIX e começo do XX, para levantar o véu do tempo que cobria esse povo misterioso.

Decifrando-se sua língua – o que constituiu um esforço semelhante ao de Champollion na decifração da Pedra de Roseta -, descobriu-se que os hititas eram indo-europeus, aparentados linguisticamente, portanto, aos persas, gregos, romanos, armênios e povos indianos falantes do sânscrito e outras línguas de mesma origem. Numa época em que a linguística era predominantemente histórico-comparativa e parecia constituir área de domínio quase exclusivo de sábios alemães (como se fosse uma “ciência germânica”), até o Kaiser da Alemanha de então acompanhava as discussões e publicações acadêmicas sobre se os hititas eram ou não indo-europeus e a semelhança de sua língua com o alemão.

A segunda parte do livro descreve os processos empregados pelos arqueólogos na escavação e datação dos sítios de localidades da Anatólia, Síria e Mesopotâmia onde os hititas se estabeleceram. Estudos feitos nesses sítios mostraram elementos culturais que podem ter influenciado os hititas ou até sido absorvidos por eles. Num dos sítios encontraram-se restos de casas com entrada pelo teto e indícios de sepultamentos feitos dentro das residências; noutro, mostras de um culto ao touro, que pode ter deixado resquícios em culturas posteriores no Oriente Médio e Europa e também na dos hititas. Relação com o mito grego do Minotauro e as acrobacias taurinas pintadas nos afrescos do palácio de Cnossos na Creta minoica? Forma ancestral dos folguedos de Bumba Meu Boi do Brasil atual? É possível que sim.

Lehmann ainda descreve o processo de datação por carbono 14, exemplificando-o por meio dos achados relacionados aos hititas, o que acrescenta uma faceta didática ao livro, a respeito dos procedimentos arqueológicos.

A terceira e última parte descreve o que se sabia até então da cultura dos hititas. Sua língua era indo-europeia, formando um sub-ramo do ramo anatólico, portanto independente dos demais ramos (armênio, indo-irânico, germânico, ítalo-céltico, balto-eslavo etc.). Restaram umas poucas peças literárias hititas, das quais o autor faz citações; o estudo do vocabulário mostra as semelhanças com o das demais línguas indo-europeias (a semelhança de palavras hititas com palavras alemãs chamou a atenção de muitos na época).

Os hititas possuíam uma espécie de conselho, semelhante ao boulé dos gregos ou senatus romano, o qual parecia limitar um pouco o poder real. Suas divindades eram representadas portando chapéus ou barretes com vários pares de chifres de touro; segundo o autor, a hierarquia das divindades era marcada pela quantidade de pares desses chifres. Os hititas, ao dominar outros povos e pilhar as cidades destes, levavam para sua capital os ídolos dos templos saqueados, os quais eram postos nos altares junto com os deuses próprios hititas, o que lhes valeu o apelido de “Povo dos Mil Deuses”.

Ao que parece, os hititas foram um grupo que, ao conquistar os povos da Anatólia, assimilou muito de suas culturas; sua civilização era um amálgama de várias origens culturais. Vindos, há uns 4.000 anos, da Ásia Central, ponto de origem das várias ondas migratórias indo-europeias, os hititas estabeleceram-se na Anatólia, assimilaram elementos da cultura local e, quando tiveram a oportunidade, tomaram o poder e criaram um império que rivalizou com as potências da época, entre elas o Egito.

Coisa curiosa: o autor sugere que o chapéu ou barrete mostrado na arte hitita teria dado origem ao chapéu semelhante usado pelos frígios (barrete frígio), usado depois por gregos e romanos com simbologia variada e, hoje, associado à liberdade. Assim, as figuras que vemos, por exemplo, em nossas moedas a representar a personificação da liberdade são certamente, em sua origem, uma herança ainda viva dos hititas.

Apesar de antigo e certamente desatualizado – muito deve ter sido descoberto sobre os hititas, nas últimas décadas – Os Hititas de Johannes Lehmann é um livro ainda importante como instrumento de divulgação sobre esse povo que teve seu apogeu há mais de 3.500 anos.

(Originalmente publicado, com o título Hititas e Arqueologia, em https://www.skoob.com.br/os-hititas-31933ed34808.html.)

Santarém, Pará, 1º/12/2015. Editado em 7/1/2016.

Michael S. Hart, um visionário

Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.

Castro Alves, O Livro e a América

No dia 4 de julho de 1971, o americano Michael Stern Hart recebeu um presente inusitado: uma cópia impressa de distribuição gratuita da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Aquilo lhe deu uma ideia: digitar o texto no computador (um Sigma V da Xerox, com a espantosa memória de 16K!) que ele usava num laboratório na Universidade de Illinois e distribuí-lo através da rede interna de computadores da universidade, e daí para as demais universidades e bibliotecas conectadas à Internet – que já existia havia alguns anos, mas era muito diferente e bem menos abrangente do que é hoje; o filme War Games (“Jogos de Guerra”, 1983) dá-nos uma ideia do que era a Internet comercial e doméstica por volta de 30 anos atrás.

Michael Stern Hart (1947-2011)
Michael Stern Hart (1947-2011)

Estava então criado o livro eletrônico, ou e-book. E os que receberam pela rede o arquivo da Declaration of Independence fizeram a primeira descarga (ou download, como queiram) conhecida de um livro eletrônico! Tornava-se realidade o que até ali era apenas um elemento de ficção científica, como visto, por exemplo, nos episódios de Jornada nas Estrelas.

Depois daquele título pioneiro, vieram outros: a Bíblia, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, obras de Shakespeare, Homero, Melville… Nascia assim a biblioteca digital livre Project Gutenberg, a primeira e mais conhecida iniciativa de produção e distribuição de livros eletrônicos, baseada em arquivos de texto (.TXT), leves e de fácil armazenamento e transmissão, podendo depois ser postos em outros formatos, como o PDF. O Projeto Gutenberg apostava na Internet – à época, recém-criada e em lenta expansão – para a difusão gratuita da literatura. A aposta, como vimos, mostrou-se vencedora.

Por cerca de 25 anos, Hart trabalhou sozinho, digitalizando em média 1 livro por mês, até que a explosão da informática e da Internet e o surgimento da World Wide Web, trazendo maior facilidade de contato e distribuição dos arquivos eletrônicos, possibilitaram a chegada de voluntários de diversas partes do mundo, multiplicando muitas vezes o número de títulos e línguas do catálogo. Hoje o Projeto Gutenberg possui quase 50.000 títulos em mais de 60 línguas.

O catálogo possui textos em domínio público e outros publicados com autorização dos autores. A maior parte do acervo é constituída de títulos em inglês (mais de 41.000); a língua portuguesa está representada com 539 obras, dentre as quais Os Lusíadas, de Camões, Como e por que sou Romancista, de José de Alencar, inúmeras obras de Camilo Castelo Branco, João de Deus, Júlio Dinis, Alexandre Herculano, Guerra Junqueiro, além de muitas raridades, como o hilário Álbum Chulo-Gaiato, as Trovas do Bandarra e textos de autores pouco conhecidos na atualidade, como o paraense João Marques de Carvalho (1866-1910), do qual estão disponíveis Contos do Norte, Contos Paraenses e Entre as Ninfeias.

O português é a sétima língua do catálogo em número de títulos, superada, além do inglês, pelo francês (2.593), alemão (1.306), finlandês (1.143), holandês (710) e italiano (639), e à frente, entre outras línguas, do espanhol (464) e chinês (410). O latim está presente com 95 títulos; o esperanto, língua internacional planejada lançada em 1887 por L. L. Zamenhof, está presente no catálogo com 104 obras.

Hoje completam-se 4 anos da morte de Michael S. Hart, que tinha 64 anos e vinha trabalhando havia 4 décadas na digitalização e divulgação de livros. Seu falecimento, ocorrido em 6 de setembro de 2011, foi noticiado em vários meios de comunicação, inclusive no Brasil, e muito lamentado. Teotônio Simões, no sítio www.ebooksbrasil.org, foi sucinto e direto ao noticiar a morte de Hart, chamando-o “um ser humano exemplar”. Creio que Michael Hart tenha partido com a sensação de dever cumprido. Sua iniciativa rendeu ótimos frutos e tornou mais fácil o acesso a textos aos quais, de outro modo, as pessoas ficariam alheias.

A Internet é uma das maiores criações da humanidade em todos os tempos, e talvez a principal das últimas décadas, possibilitada que foi pelas descobertas dos últimos séculos, desde que o domínio da eletricidade permitiu a criação e operação de máquinas capazes de transmissão de dados por cabos, e depois sem eles.

Mas ela é também – pelo menos no momento – um dos pontos de culminância de um longo processo que se iniciou há muito tempo, quando aqueles nossos primeiros ancestrais, peludos, sujos e fedorentos, de baixíssima expectativa de vida, perderam o medo do exterior e resolveram sair da caverna para ver o que havia fora dela; desde que perderam o medo do fogo e resolveram acendê-lo por conta própria, sem esperar que algum raio fizesse arder uma árvore ou que alguma divindade o trouxesse; desde que observaram os ciclos da natureza e viram que podiam plantar seu próprio alimento, sem precisar sair em busca dele, e criaram as cidades; desde que olharam para o céu noturno e, sem o saber, criaram a astronomia – que nos permitiria compreender a mecânica celeste e de todas as coisas – e sua irmã de maior apelo popular, a astrologia – que surpreendentemente ainda sobrevive, feliz e ditosa, contrariando o vaticínio de homens de ciência de diversas épocas.

A Internet trouxe ainda consigo, além da possibilidade de comunicação praticamente imediata, alguma liberdade de escolha para a difusão da cultura. Enquanto os grandes grupos e lobbies editoriais e culturais ditam o que devemos ler e ouvir, anônimos abnegados dedicam seu tempo a resgatar, do poço do esquecimento, obras escritas e audiovisuais às quais, de outra forma, jamais poderíamos ter acesso. Poetas e filósofos, cronistas e cientistas, musicistas e cantores, como novas fênix, renascem das cinzas da história, reavendo o único e verdadeiramente sagrado direito que todo autor tem: o de ter sua obra disponível às pessoas para ser lida, vista, ouvida.

A civilização mundial que se começa lentamente a construir requer liberdade de pensamento e de difusão do pensamento, e os primeiros passos em busca dessa civilização foram dados por pessoas como Michael Stern Hart, as quais enxergaram muito além de seu tempo.

Miremo-nos em seu exemplo.

Santarém, Pará, 18/9/2012. Editado em 6/9/2015.

Aprendendo com os antigos egípcios

rosalie-david_religiao-magia_egito“O objetivo comum da irrigação forneceu uma força unificadora e certamente contribuiu para a criação final de um estado político em c. 3100 a.C. […]
Quando o rio subia, uma série de canais direcionava a água para essas bacias, de modo que a terra ficava inundada. Então, a água era retida ali para que o lodo que carregava consigo ficasse depositado na terra. Quando o rio recuava novamente, qualquer água remanescente era drenada, e os fazendeiros podiam, então, arar a terra e plantar seus grãos. Era necessária uma organização complexa de mão de obra e dos recursos para construir e manter esse sistema, e os reis devotaram um esforço considerável para assegurar que as represas e os diques fossem construídos, que os canais fossem cavados e que o sistema fosse devidamente mantido. Períodos de colapso político e econômico foram sempre acompanhados da negligência do sistema de irrigação.

DAVID, Rosalie. Religião e Magia no Antigo Egito. Tradução de Angela Machado. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. p. 32. [Grifos meus.]

O trecho acima está de acordo com a ideia geral de que a necessidade de criar e manter um sistema amplo de irrigação, que aproveitasse a cheia anual do rio Nilo, captando e distribuindo melhor e mais amplamente a água e propiciando colheitas mais abundantes, tanto impulsionou a unificação do Egito, há cerca de 5.000 anos, como também passou a depender do Estado sua conservação.

“O Egito é uma dádiva do Nilo”, diziam os antigos, e o aproveitamento de suas benesses dependia da estabilidade do Estado e do faraó.

Qualquer semelhança (ou a ausência dela) com a atual crise de abastecimento de água e de energia elétrica resultante da ação de governos que conhecemos não é mera coincidência.

Santarém, PA, 7/3/2015. Editado em 23/2/2016.

Um episódio da II Guerra Mundial [por Yevgeny Yevtushenko]

Para ser poeta, não é suficiente saber escrever poemas.
É necessário ter capacidade para defendê-los.
Yevgeny Yevtushenko, Autobiografia Precoce

Yevgeny_Yevtushenko_Autobiografia_precoceLendo a obra Autobiografia Precoce (1963) do escritor, ator e diretor russo Yevgeny Yevtushenko (ou Eugênio Evtuchenko, como ficou conhecido no Brasil), topei com a passagem que reproduzo abaixo, a qual consta no capítulo 4. Trata-se de descrição da reação da população moscovita quando da passagem, pela capital russa, de cerca de 25.000 prisioneiros de guerra alemães. Yevtushenko tinha, à época, 11 anos.

É curiosa e espantosa, ainda que não fosse inesperada, a reação da população, que se dá conta de um aspecto que não contava encontrar em seus inimigos de guerra: humanidade.

Nos tempos atuais, mais do que nunca, fatos como esses nos levam a refletir sobre o autoritarismo e o nacionalismo, que só têm servido para separar os seres humanos, levando-os à mais bizarra das criações humanas: a guerra.

Eis o ocorrido, nas palavras de Yevtushenko:

“Em 1944 minha mãe e eu voltamos a Moscou. Aí, pela primeira vez em minha vida, tive ocasião de ver os inimigos. Se não me engano eram 25.000 alemães que deviam atravessar, em uma só coluna, as ruas da capital.
Todas as calçadas estavam apinhadas de gente cercada pelos soldados e pela milícia. A multidão era constituída, na sua maioria, de mulheres.
Mulheres russas, de mãos deformadas pela dureza do trabalho, com lábios sem batom, ombros magros sobre os quais repousava o peso essencial da guerra. A cada uma delas, provavelmente, os alemães haviam levado um pai, um marido, um irmão ou um filho.
Elas olhavam com ódio na direção de onde se esperava a coluna de prisioneiros.
Depois, esta apareceu.
Na frente, marchavam os generais, trazendo levantados os maxilares maciços, e os ângulos dos lábios contraídos, desdenhosos. Assim, queriam reafirmar a sua superioridade aristocrática sobre a plebe que os havia vencido.
As mãos obreiras das mulheres russas se fechavam coléricas quando eles passavam.
– Fedem a água de colônia, esses sujos! gritou alguém na multidão.
Os soldados e os milicianos tiveram que se apoiar em toda a força de seus corpos para impedir que as mulheres rompessem a barragem.
No entanto, de repente, algo se passou com a multidão.
Chegavam os soldados alemães, magros, sujos, barbados, as cabeças envoltas em ataduras ensanguentadas, apoiados em muletas ou nos ombros de seus camaradas. Passavam cabisbaixos.
Um silêncio de morte se instalou na rua. Não se ouvia nada a não ser o lento arrastar dos seus sapatos e de suas muletas.
Vi uma matrona usando grandes botas russas colocar a mão no ombro de um miliciano.
– Deixe-me passar.
Havia algo na voz daquela mulher. Diante do tom imperativo o miliciano abriu-lhe o caminho. Ela aproximou-se da coluna e tirou de seu blusão um pedaço de pão preto cuidadosamente envolto num lenço. Deu-o a um prisioneiro exausto, que se sustinha com dificuldade.
De repente, outras mulheres seguiram seu exemplo e começaram a jogar pão e cigarros aos soldados alemães vencidos.
Não eram mais os inimigos.
Eram, agora, homens.”

EVTUCHENKO, Eugênio. Autobiografia Precoce. Tradução de Yedda Boechat Medeiros. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1967, pág. 37-39.

A faraona Hatchepsut

FÈVRE, Francis. Faraona de Tebas: Hatchepsut, Filha do Sol. Tradução de Gilda Stuart. São Paulo: Mercuryo, 1991.
[La Pharaonne de Thèbes – Hatchepsout, Fille du Soleil. Presses de la Renaissance, 1986.]

faraona_de_tebasFaraona de Tebas: Hatchepsut, Filha do Sol não é um romance, tampouco uma obra estritamente acadêmica sobre o assunto; está mais para biografia, mas creio que a definição mais adequada é a de “documentário”, bem ao estilo do que ficou comum nos dias atuais em programas de TV sobre história: com base no conhecimento alcançado sobre determinada época, local e povo, traça-se uma visão panorâmica (às vezes aprofundada em certos aspectos) da época ou personagem estudada, tentando-se reconstituir, inclusive com dramatização, fatos históricos e preencher lacunas.

É o que faz nesta obra o historiador francês Francis Fèvre, autor de outros livros, incluindo-se dois romances sobre o Egito antigo. A partir do que se sabia, em meados da década de 1980, sobre a rainha-faraó (ou “faraona”) Hatchepsut, ele reconstitui a época, a cultura, as festas religiosas, a vida na corte, as intrigas palacianas e arrisca lançar hipóteses sobre a vida ainda não bem conhecida dessa soberana da XVIII dinastia egípcia.

Algumas digressões do autor servem para situar o Egito no contexto do Oriente Médio daquela época; outras descrevem rituais religiosos, o embalsamamento e sepultamento dos monarcas; o trabalho dos camponeses e dos operários das obras do Estado; o ritmo das cheias e vazantes do Nilo, fecundando a terra negra que dava nome ao país de Kemit; ou ainda traçam analogias com outras civilizações milenares, como a chinesa, além de recuperar para os dias atuais a importância de Hatchepsut para o Egito antigo.

A cronologia possivelmente mudou com as descobertas mais recentes (algo comum quando se trata de fatos ocorridos há tanto tempo e ainda muito nebulosos), mas atenho-me à do texto que comento e à grafia dos nomes egípcios citados pelo autor – baseados na ortografia francesa, o que foi em parte conservado na tradução (a forma mais comum é “Hatshepsut”).

Hatchepsut teria nascido por volta de 1535 a.C. e morrido com cerca de 50 anos de idade, possivelmente em 1484 a.C., após reinar por 20 anos no lugar de seu enteado Tutmósis III (ou Tutmós, Tutmés). Como Tutmósis era muito pequeno, Hatchepsut assumiu o trono após a morte do meio-irmão e marido, Tutmósis II, fazendo-se representar como homem em todas as situações. Não se tratava, portanto, de uma mulher ocupando o trono do Egito, como ocorreu algumas vezes durante a menoridade do herdeiro, mas de um faraó que era mulher, com todos os títulos, dignidades e indumentária do cargo (inclusive a barba falsa ou postiça). Após sua morte, assume definitivamente o trono seu enteado, Tutmósis III, filho de Tutmósis II com uma concubina. Tutmósis III reinou por cerca de 35 anos e foi o faraó mais vitorioso do Egito, e com ele o país alcançou a extensão máxima de sua fronteiras, perdidas ou conservadas a duras penas, quando possível, por seus sucessores.

Apesar de que não se trata de um romance, o autor vale-se da técnica do discurso indireto livre para entrar nas mentes das personagens históricas, e os pensamentos dele misturam-se com os das personagens que reconstitui. Às vezes decorrem disso certos anacronismos, ao que parece – intencionais ou fruto do mergulho do autor na “mente” reconstituída de suas personagens? Fèvre reconstitui as personagens históricas e entra em suas mentes, tentando saber o que pensavam, seus anseios e frustrações.

Descreve e/ou sugere a formação de Hatchepsut e seu casamento com o meio-irmão; a altivez e a consciência de ter sido talhada para o exercício do poder; o desgosto de ter nascido mulher num contexto de domínio masculino; a possível frustração de ver, pela terceira vez, um bastardo no trono do Egito (o autor levanta a hipótese de que Tutmósis I era filho bastardo de Amenófis I, que o teria casado com a filha legítima para conservar o sangue divino dos faraós – o casamento entre irmãos era fato comum nas casas reais egípcias; a esposa de Tutmósis III era sua meia-irmã, filha de Hatchepsut). Quanto a Tutmósis III, seu fortalecimento como comandante militar, enquanto espera o momento de reinar; o ódio àquela mulher que não lhe permite ocupar o trono que lhe é de direito; o alívio e satisfação com sua morte; a posterior decisão de apagá-la da história.

O autor tenta também responder a algumas questões: Teria Hatchepsut tentado iniciar um matriarcado no Egito, instituindo a possibilidade de uma mulher ocupar o trono após ela (sua filha Neferurê)? Se tentou isso, não o conseguiu. Teria havido uma relação amorosa entre Hatchepsut e Senenmut, seu vizir e arquiteto, construtor do maravilhoso templo de Deir-el-Bahari? Se não, por que Senenmut se fez representar no templo de sua rainha? Como ela teria conseguido reinar como faraó por tanto tempo (cerca de 20 anos ou um pouco mais)?

Fèvre defende que o reinado de Hatchepsut foi um período de estabilidade, de fortalecimento interno, de apego às tradições e à religião, mais voltado à diplomacia e ao comércio do que à armas; depois dela o Egito se abre para o mundo e se torna potência militar sob Tutmósis III, o Grande.

Após sua morte, Hatchepsut começa a ser apagada da história. Seus sucessores destroem suas estátuas, apagam seu nome e imagens dos templos que ela construíra, riscam seu nome dos registros; mas nem tudo conseguiram destruir, e o que restou ajuda a reconstituir, pelo menos em parte, sua vida e importância para a história egípcia.

O texto apresenta alguns erros tipográficos, o que não atrapalha a leitura. Destaco o fato de aparecer em todo o texto a forma amessida (nome da XVIII dinastia, fundada por Ahmósis I, bisavô de Hatchepsut); a forma correta em português é améssida, análoga a raméssida (designativo da XIX dinastia, fundada por Ramsés I).

Apesar de publicado originalmente há quase  30 anos, é livro ainda atual e que se lê com grande proveito e prazer.

Santarém, PA, 21/1/2015. Editado em 28/2/2015.

Cama, mesa e banho

DIBIE, Pascal. O Quarto de Dormir: um estudo etnológico. Tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
[Ethnologie de la Chambre a Coucher. Éditions Grasset & Fasquelle, 1987.]

dibie_quartodedormirO Quarto de Dormir: Um Estudo Etnológico de Pascal Dibie é uma leitura muito instigante. Li-o há uns 10 anos, com muito interesse, e gostei. O autor considera-se “amante da preguiça” e, quando lhe é infiel, produz suas pesquisas, como este livro, em que traça um estudo histórico e etnológico de como o ser humano tem dormido até hoje, desde as cavernas, enrolado em peles, até as camas modernas de hoje (ou da década de 1980, quando a obra foi escrita).

Assim, o autor debruça-se sobre o sono de nossos ancestrais das cavernas (boa proteção contra o frio e os animais), sobre esteiras, nas primeiras camas, em nichos em paredes, tatâmis, além da origem dos colchões e edredons, até as extensões do quarto de dormir, que mudou de natureza e foi incorporando outras funções e apetrechos, como o banheiro.

A posição do quarto dentro da casa, do porão ao sótão (por exemplo, atrás da cozinha, para ser aquecido); as relações do quarto com os demais cômodos da casa, os comportamentos de “cama, mesa e banho”, o surgimento das privadas (chamadas no início “cadeiras de latrina”, pois se tratava de cadeiras com uma abertura no assento, embaixo da qual se punha um vaso para recolha dos dejetos) – tudo isso é comentado, e se vê a história do comportamento de parte da humanidade dentro de casa, principalmente no quarto.

Nem a nossa popular rede, herdada dos indígenas, foi esquecida – o autor a experimentou e apreciou!

Acrescente-se que o estudo abrange também tudo o que se pode relacionar com esta parte tão importante da casa: do comportamento social familiar através dos tempos até o surgimento dos relógios despertadores…

Uma leitura que recomendo, de preferência numa poltrona bem confortável ou numa rede bem preguiçosa, não necessariamente no quarto de dormir.

Texto da contracapa:

Simples canto de caverna coberto de peles de animais ou suntuoso aposento de palácio com grande leito de dossel, o quarto de dormir foi e continua sendo a peça mais importante da habitação, onde o homem passa pelo menos a terça parte de seu tempo. Ao contar a história dessas quatro paredes – testemunhas dos atos mais íntimos do ser humano – o etnólogo francês Pascal Dibie constrói um estudo original, em que aponta as diversas relações entre o objeto de sua análise e os mais variados aspectos culturais nos quais se inserem, como a religião e a sexualidade, a arquitetura e a decoração.

Santarém, PA, 27/2/2015. Editado em 26/4/2016.