Luís Gama escravizado

Em sua obra O Brasil Anedótico (1927), Humberto de Campos* reproduz a seguinte história, contada por Cândido Freire, sobre como Luís Gama*, nascido livre, tornou-se escravo:

A VENDA DO FILHO
Cândido Freire – “Rev. do Brasil”, n° 60, de 1920

A 10 de novembro de 1840 penetravam a bordo do patacho Saraiva, ancorado a pouca distância do cais, na Bahia*, um pretinho de dez anos, e que seria mais  tarde o poeta e abolicionista Luís Gama, o pai deste, homem branco, e jogador, que o tivera de uma preta mina, e o dono de uma
casa de tavolagem, de nome Quintela.
Enquanto o menino se distraía com os marinheiros, os dois entram em entendimento com o capitão, e retomam o bote que os trouxera. Ao vê-los partir, o negrinho corre, chega à escada, e grita:
– Meu pai? meu pai? não me leva?
– Eu volto já, para te levar – informou o miserável.
E o menino, compreendendo tudo, num ímpeto de dor e de revolta:
– Meu pai, o senhor me vendeu!…
E era verdade. Foi assim, vendido, que Luiz Gama veio para o Rio, e foi, escravo, do Rio para São Paulo.

Campos, Humberto de. A venda do filho. In: O Brasil Anedótico. Rio de Janeiro, 1927. Ortografia atualizada. Disponível aqui: <http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/humberto3.pdf>.


* Sobre Humberto de Campos: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_de_Campos>.

* Mais sobre Luís Gama: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Gama>.

* Refere-se à capital da Bahia, ou seja, a cidade de Salvador.

Santarém, PA, 20 de novembro de 2019.

Discurso (não proferido)

No último dia 5 de novembro, por ocasião das comemorações dos dez anos de fundação da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), universidade onde trabalho, fui homenageado, juntamente com outros servidores, durante a cerimônia.
Quando soube que haveria essa homenagem (fomos avisados antes), fiquei apreensivo, pois não gosto de expor-me assim. Preferia não ser chamado lá para a frente: “E se quiserem discurso?” 🤔😱
Rascunhei um discurso rápido, que depois melhorei; iria imprimi-lo e levá-lo no bolso, uma página só, para o caso de precisar. Mas, por sorte, isso não estava previsto, pois haveria várias pessoas a homenagear, a mesa teria muitas autoridades, e a cerimônia seria longa. Ufa!
Não o joguei fora, porém (não jogo nada fora!); publico-o aqui, como agradecimento e depoimento de quase uma década de trabalho.

 

DISCURSO (que não proferi)

5 de novembro de 2019

Agradeço a homenagem que recebo aqui hoje, apesar de não me considerar merecedor dela: ser eu o primeiro servidor técnico-administrativo concursado a assinar seu termo de posse na Universidade Federal do Oeste do Pará não foi resultado de mérito, mas sim um golpe de sorte, uma brincadeira do destino. Eu, inconsciente, estava lá, naquele momento… e fez-se!

Ainda assim, recebo de boa mente esta honraria, que tenho por reconhecimento de meu amor pela instituição. É grande minha satisfação por ser um servidor público federal, e maior satisfação ainda tenho de ser servidor da Ufopa, que eu vi nascer no local mais privilegiado e aprazível da Amazônia, às margens do mais belo rio do mundo ─ o Tapajós. À Ufopa tenho dado o melhor de mim, tenho feito o melhor possível, e mais ainda farei, se o puder. Não sou concurseiro: na Ufopa não estou de passagem, nem para brincadeira, e espero ainda contribuir por muito tempo para ela.

A Ufopa cresceu muito nestes dez anos, resultado do esforço de seus professores, técnicos e alunos; talvez tenha crescido menos do que queriam alguns, e mais do que esperavam outros.

Mas devemos olhar é para o futuro, com base no agora: alunos formados pela Ufopa já ocupam posições de destaque no meio acadêmico, profissional e científico, e recebem prêmios; professores participam de importantes projetos de pesquisa nacionais e internacionais; técnicos também se destacam e recebem prêmios e menções honrosas ─ e cada um de nós conhece ao menos um desses membros proeminentes de nossa Comunidade Ufopiana.

Se nossa universidade já se destaca localmente por sua formação humana e técnica, por sua produção científica e cultural, que começa a espraiar-se pelo País, levando longe o seu nome, fico a imaginar o que a Ufopa terá alcançado quando estiver celebrando seus 20, 30, 50 anos de vida!

O potencial da Ufopa é imenso; e ela será o que nós fizermos dela. Se cada um de nós der o melhor de si por nossa Universidade, a Ufopa não conhecerá barreiras nem terá limites.

Parabéns, Ufopa! Muito obrigado!

Júlio César Pedrosa

Gritos Estrangulados

GRITOS ESTRANGULADOS
(Strangolitaj Krioj)

Julius Balbin (1917-2006)

Passamos a noite inteira seguros,
amparando um ao outro com ternura,
escondidos numa pequena câmara
atrás de pesadíssimo armário.

Amanheceu com a ameaça da morte
que rugia dos alto-falantes
a todos os moradores do gueto escondidos.
Emboscados pelo pânico,
tremendo, caminhamos das portas
para as ruas cinzentas
onde fomos, em meio a uma multidão aterrorizada,
capturados pelos homens da SS
e policiais judeus
que nos batiam com coronhas e chicotes.

Em nosso pânico e terror
nós corríamos caoticamente,
mas as coronhas e chicotes
separaram-nos em duas colunas.

Minha mãe e eu,
ainda agarrados um ao outro,
fomos separados
pelo chicote de um judeu.

Apenas um golfar
de obscenidades alemãs
rompia o silêncio
de gritos estrangulados.

Entre os cativos
ninguém sabia
qual das duas colunas
seria agora transportada
às distantes fábricas da morte.

Ainda consigo ver
através da bruma de lágrimas
o rosto de minha mãe,
submetida, assim como
seu gesto desesperado
para que eu ficasse tranquilo.

(Traduzido do esperanto por Júlio César Pedrosa.)

BALBIN, Julius. Strangolitaj krioj. In: Imperio de l’ koroj: Du poemaroj. Pizo, Italujo [Pisa, Itália]: Edistudio, 1989. p. 174-175.

Vacas gordas e espigas cheias

Documentário do canal History fala sobre escavações arqueológicas na ilha de Gozo, em Malta: descobertos restos de templos e sepulcros de cerca de 2400 a.C. Uma mudança climática parece ter afetado o frágil equilíbrio do ecossistema em que vivia o “povo dos templos”, levando ao seu desaparecimento.
Os achados mostram que, assim como em outras civilizações do passado, os templos desse povo antigo eram usados como armazéns para estoque de alimentos, distribuídos ao povo em épocas de vacas magras e espigas mirradas.
Que evolução tivemos desde então: hoje os templos acumulam dinheiro, mas para benefício apenas dos líderes das seitas: para estes as vacas são sempre gordas, e as espigas são cheias…

Campeonato Paulista de 1988

17 de julho: o já desclassificado Palmeiras enfrenta o São Paulo, o então campeão, que precisa apenas de um empate para ir a mais uma final seguida, desta vez contra o Guarani. O Corinthians acompanha o Choque Rei e reza por um milagre: para enfrentar o Guarani, além de vencer o Santos (o que faz no mesmo dia por 2×0), precisa de que o Palmeiras vença o São Paulo. Os corintianos torcem por seu arquirrival contra o Tricolor do Morumbi!
A pressão sobre o Palmeiras é enorme: além das chacotas por amargar 12 anos sem títulos, os palmeirenses ainda têm de aturar a denúncia de que pretendem deixar o São Paulo vencer para evitar que o Corinthians seja finalista. Parte da torcida deseja mesmo isso: “Entrega o jogo! Entrega o jogo!” — o grito ecoa no estádio do Morumbi…
Mas a história é outra: com gol de Gerson Caçapa, o Palmeiras vence o São Paulo, o que põe o Corinthians na final contra o Guarani.
Parte da torcida odiou isso. A manchete de capa da revista Placar dizia: PORCORINTHIANS! Torcedores manifestaram-se na porta do Parque Antártica: “Filial, filial, filial da Marginal!” — era o que gritavam.
E o resto da história? Bem… Após empate por 1×1 no Morumbi — o gol bugrino foi de Neto, numa antológica bicicleta —, o Corinthians venceu o Guarani na finalíssima no Brinco de Ouro da Princesa, em Campinas, com gol de Viola, e conquistou seu vigésimo título.
Um figurão da diretoria do Corinthians, após o primeiro jogo da final, fizera pouco caso do gol de Neto: “Não precisamos de gol de bicicleta!” Bata-se na boca! Suprema ironia: dois anos depois, Neto se consagrava no Alvinegro da Marginal.
Passados mais de 30 anos, não sei se o Corinthians teve a oportunidade de retribuir o “favor” de seu maior rival (a de hoje ele perdeu…); mas muitos palmeirenses jamais perdoaram a vitória do Verdão naquele Choque Rei de 17 de julho de 1988.

Santarém, Pará, 3 de novembro de 2019.