Molho campeão

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Num programa de concurso culinário na TV, uma participante é inquirida por um dos jurados: “Que prato você fez?”
Ela: “Blá blá blá etc. e tal e um molho de CHAMPION…”
Acho que ela quis dizer CHAMPIGNON.
A língua francesa já não tem o prestígio de outros tempos. (Ouvi certa vez uma aluna de Letras referir-se ao francês como “língua de veado”. Não me lembro de ter captado ironia ou jocosidade em sua voz – mas já faz tempo e a memória me vai falhando…)
Não creio que todo esse povo que quer ser chef de cuisine deseje ou tenha tempo de aprender francês; é possível que os que estudam gastronomia no exterior tenham aulas em inglês… talvez mesmo na França.
Mas penso que quem quer ser chef deve pelo menos pronunciar (e grafar) os termos “técnicos” conforme o original francês. É o recomendável, aliás.
Se ela tivesse usado o vernaculíssimo termo COGUMELO, essa gafe não teria ocorrido.
Ou, por outra: “Se o Pica-Pau tivesse comunicado a Polícia…”

Nacionalité… française?

Num programa de TV, um dos comentaristas convidados declina a pergunta que já se tornou chavão nas últimas semanas após os atentados de 13 de novembro em Paris: “Como é possível que jovens franceses, jovens nascidos e criados na França cometam esses atentados contra a própria França?” A pergunta vale também para os belgas envolvidos e é repetida à exaustão nos meios de imprensa.

Talvez a pergunta esteja sendo mal formulada; ou talvez nem seja essa a pergunta a ser feita.

As pessoas nascidas em território da França têm nacionalidade francesa, não importando de onde tenham vindo seus pais; o processo é semelhante no Brasil e na própria Bélgica, além de muitos outros países. Não há dúvida, portanto, de que os terroristas em questão eram franceses, assim reconhecidos pelo estado francês.

Mas será que eles consideravam a si mesmos franceses? Será que se sentiam, se viam a si mesmos franceses? Tinham-se e eram tidos como tais pelos demais? Olhando ao redor de si em Paris, Lião, Bordéus ou na Provença eles se sentiam como parte daquele ambiente, daquela paisagem?

Mais: será que a França de seus sonhos não seria um país de população majoritariamente muçulmana, com a história e a cultura marcadas pelo islamismo? Ao invés de “Filha Predileta da Igreja”, não gostariam que a França fosse a “Filha Predileta do Islã”?

Discute-se nos tempos atuais a fluidez, a imprecisão das identidades, além da autodeterminação: o indivíduo tem o direito de identificar-se como quiser, mas ao mesmo tempo essa identidade pode ser múltipla, pois o cidadão participa de vários grupos, várias identidades a um só tempo. Não há um só modo de “ser brasileiro” ou “ser francês”; por outro lado, um brasileiro pode ser também, concomitantemente, francês – e vice-versa. O que não é coisa de hoje, pois se atribui a Thomas Jefferson a seguinte frase, que descreve o espírito de uma época: “Todo homem tem duas pátrias: a sua e a França”. O brasileiro Tomás Lopes enriqueceu-a: “Paris é a segunda pátria de toda pessoa inteligente”.

Voltando à imprecisão da identidade, temos que Mário de Andrade já nos tinha adiantado isso em seu Macunaíma: o “Herói sem Nenhum Caráter” é filho da “índia Tapanhumas”, nasce “uma criança feia” e torna-se depois “branco”; e em seu trânsito pelo espaço brasileiro, ao qual se molda, mostra-se diferente em cada local.

Ainda que se aceitasse haver um só modo de “ser brasileiro”, por exemplo, isso estaria em constante mudança, detectando-se na mesma sociedade estágios diversos de um mesmo processo de evolução cultural.

Assim, o que se deve perguntar é o que a República Francesa (incluindo-se aqui o Estado e seu povo) tem feito para a integração dos imigrantes e seus filhos à cidadania e cultura do país, respeitando ao mesmo tempo suas particularidades, as identidades dos grupos menores. O fato de alguém ser muçulmano, judeu, cigano ou filho de africanos ou latino-americanos não é empecilho para que seja tão francês quanto os demais ou para ser reconhecido (inclusive por si mesmo) como tal.

Trata-se, portanto, de um processo de mão dupla: educar a pessoa desde a infância para reconhecer no outro um concidadão, apesar de suas diferenças, ao mesmo tempo em que se educa esse cidadão para reconhecer-se como integrante daquela comunidade, apesar de saber ser diferente dos demais.

A simples ação tradicional do Estado já não basta, está ultrapassada. É preciso repensar o conceito de nacionalidade, mas sem cair no nacionalismo chauvinista – o que pode ser difícil.

Não é mesmo um trabalho fácil. Mais do que política de Estado, deve ser um debate da própria sociedade, a atravessar gerações.

Vale também para o Brasil.

Santarém, Pará, 27/11/2015.

Subconsciente colonizado

A colonização cultural e mental de nosso povo fica cada vez mais evidente – pelo menos para mim.

Observo-a em certos detalhes, como o fato de correspondentes brasileiros de imprensa na França pronunciarem nomes franceses como se fossem ingleses. Não é só o nome da famosa torre parisiense, é todo e qualquer nome próprio.

Outros povos, ainda não dominados por essa mania, costumam ter dois procedimentos em face de uma situação destas:

1- Pronunciar tais palavras como na língua de origem; ou

2- Pronunciá-las como se fossem nomes de sua própria língua.

Os próprios francófonos não têm a menor vergonha de pronunciar palavras estrangeiras pela fonologia e fonética de sua própria língua.

Mas nós as pronunciamos como se fossem palavras inglesas, pois em nosso subconsciente achamos que só nós falamos o português e os demais povos todos falam inglês.

O trabalho já está feito; desmanchá-lo será difícil, senão impossível.

Pode parecer coisa pouca ou desimportante, mas não é.