Eixo do Mal

Tive um sonho (ou pesadelo) muito estranho, que me deixou pensativo.
Sonhei que eu estava deitado numa rede, e por um rádio velho eu ouvia as últimas notícias sobre a Segunda Guerra Mundial.
Estávamos em plena guerra, e o rádio trazia informes sobre o avanço das tropas, territórios tomados e perdidos, mortos e feridos, navios afundados e submarinos extraviados, bombardeios, aviões abatidos…
E o Brasil não era mero figurante: tínhamos entrado para valer na guerra e estávamos metidos nela até o pescoço. O conflito havia chegado à América do Sul; nossas tropas lutavam dos dois lados do Atlântico e até no Pacífico. Toda a nação estava envolvida no esforço de guerra. Vivíamos sob estado de sítio.
De repente, a programação do rádio foi interrompida para o pronunciamento de Sua Majestade Imperial! 😱
O Brasil ainda era monarquia, e o monarca de plantão era o imperador Pedro III.
Mas isso não era o pior: adivinhem em qual dos lados da guerra o Brasil estava…

Gritos Estrangulados

GRITOS ESTRANGULADOS
(Strangolitaj Krioj)

Julius Balbin (1917-2006)

Passamos a noite inteira seguros,
amparando um ao outro com ternura,
escondidos numa pequena câmara
atrás de pesadíssimo armário.

Amanheceu com a ameaça da morte
que rugia dos alto-falantes
a todos os moradores do gueto escondidos.
Emboscados pelo pânico,
tremendo, caminhamos das portas
para as ruas cinzentas
onde fomos, em meio a uma multidão aterrorizada,
capturados pelos homens da SS
e policiais judeus
que nos batiam com coronhas e chicotes.

Em nosso pânico e terror
nós corríamos caoticamente,
mas as coronhas e chicotes
separaram-nos em duas colunas.

Minha mãe e eu,
ainda agarrados um ao outro,
fomos separados
pelo chicote de um judeu.

Apenas um golfar
de obscenidades alemãs
rompia o silêncio
de gritos estrangulados.

Entre os cativos
ninguém sabia
qual das duas colunas
seria agora transportada
às distantes fábricas da morte.

Ainda consigo ver
através da bruma de lágrimas
o rosto de minha mãe,
submetida, assim como
seu gesto desesperado
para que eu ficasse tranquilo.

(Traduzido do esperanto por Júlio César Pedrosa.)

BALBIN, Julius. Strangolitaj krioj. In: Imperio de l’ koroj: Du poemaroj. Pizo, Italujo [Pisa, Itália]: Edistudio, 1989. p. 174-175.

Janusz Korczak

Foto: Monumento
“Korczak e as Crianças do Gueto”, escultura de Boris Saktsier (Museu do Holocausto, Yad Vashem, Jerusalém, Israel). Fotografia de Berthold Werner (Fonte: Wikipedia).

O Dia do Professor veio e passou. Eu não ia publicar nada sobre isso, já que a Internet e as redes sociais se encheram de publicações diversas, muitas delas melosas e algumas até jocosas, sobre educação, professores, escolas etc. Mas hoje me lembrei da história de uma figura heroica, lendária até: Janusz Korczak, pedagogo judeu polonês que pereceu no campo de concentração de Treblinka em 1942.

Não vou discorrer sobre a obra de Korczak, pois não sou professor nem pedagogo; nem vou contar a história de sua vida, pois o artigo sobre ele na Wikipedia (inclusive em português) apresenta bastante informação.

Mas os fatos que lhe ocorreram no fim da vida valem uma reflexão.

Ao ser confinado no infame Gueto de Varsóvia, Janusz Korczak era já um pedagogo, professor e escritor reconhecido e respeitado, autor de 24 livros e cerca de 1.400 textos publicados em revistas. Editou periódicos e teve programa no rádio. Em 1937, pelo conjunto de sua obra, foi laureado com um prêmio da Academia Polonesa de Literatura. Um currículo que causaria inveja numa lista de indicados ao Prêmio Nobel, mas que de nada lhe valeu contra a crueldade da guerra.

No gueto, Korczak e outros professores eram responsáveis por cerca de 200 crianças órfãs.

Em 5 ou 6 de agosto de 1942, o Gueto de Varsóvia foi evacuado pelos alemães e Korczak se recusou a fugir, pois não queria abandonar as crianças. Ele e seus colaboradores permaneceram com elas até o fim. Korczak ficou ao lado de suas crianças, com elas foi deportado a Treblinka e com elas pereceu.

Morreu fiel àquilo que defendeu por toda a vida.

Glória imortal à memória de Janusz Korczak e daqueles, famosos ou anônimos, que trataram e tratam a educação como coisa séria!

E vergonha, execração, anátema a todos aqueles que, principalmente no Brasil, transformaram a educação em caso de polícia…

Mais sobre Janusz Korczak: https://pt.wikipedia.org/wiki/Janusz_Korczak

Santarém, Pará, 17/10/2015.

Tropa ou tropas? OMAC explica!

OMAC6
Capa do número 6 de OMAC, julho-agosto de 1975. Fonte: Wikipédia.

OMAC (One Man Army Corps, “Exército de Um Só Homem”) é uma personagem futurista de histórias em quadrinhos, criação de Jack Kirby para a DC Comics. Kirby foi um dos mais talentosos e prolíficos artistas do ramos das HQs e sempre gostei de sua arte de traço inconfundível. (Podem exprobrar-me os americanófobos: gosto de quadrinhos americanos… mas só dos clássicos!)

Mas esta postagem não tem nada que ver com HQs. É que sempre me lembro de OMAC quando deparo com certo tipo, cada vez mais frequente, de erro de tradução.

Ocorreu-me isso recentemente ao ver o documentário A II Guerra Mundial Vista do Espaço, no canal History 2; ao citar a invasão da fronteira ocidental da União Soviética pelo exército alemão, o locutor diz: “Num front de mais de 2.900 km, 4 milhões de TROPAS alemãs invadem a URSS ao mesmo tempo”.

4 milhões de tropas! É muito ou pouco? É muito, mas parece que pode ser muito mais… de acordo com o pensamento de quem traduziu isso.

A palavra portuguesa tropa tem valor coletivo, refere-se a um grupo – de soldados, neste caso. Uma tropa pode ser um pelotão, uma companhia ou bateria, um batalhão ou esquadrão, uma brigada, uma divisão ou um exército inteiro; mas nunca um só indivíduo. O Dicionário Eletrônico Caldas Aulete dá diversas acepções para a palavra tropa, todas com valor coletivo, nunca referente a um só indivíduo. Não consigo entender como se continua a cometer esse erro grosseiro.

Se considerarmos que os 4 milhões de tropas referem-se a pelotões (dos grupos citados, o menor, com cerca de 30 indivíduos), a União Soviética teria sido invadida por cerca de 120 milhões de soldados, número muito maior que toda a população alemão de antes da II Guerra, que talvez fosse de uns 80 milhões. Ainda que fossem grupos de combate de cerca de 10 elementos, ainda seriam 40 milhões de soldados, número também exagerado.

O número se refere, de fato, ao contingente de militares contados individualmente; eram, portanto, 4 milhões de homens, não 4 milhões de tropas. E o mesmo erro de tradução de tropa se repetiu outras vezes; fiquei enfadado e nem vi o filme até o fim. O canal History realmente não aprende! E continua a desapontar-me, pois o mesmo erro tem ocorrido em outros programas de temática semelhante. Esse canal de TV dos Estados Unidos talvez seja bom em history (há controvérsias!); mas quando se trata de language

Por isso, lembremo-nos: uma tropa é um conjunto; 30 soldados não são 30 tropas, são 1 tropa de 30 soldados.

Somente na ficção científica existe tropa de um homem só…

Santarém, Pará, 24/10/2014. Editado em 4/9/2015.

Nossa Única Posse [poema de Julius Balbin]

Julius Balbin (Fonte: http://miresperanto.com/en/articles/strangled_cries.htm)
Julius Balbin
(Fonte: http://miresperanto.com)

Nossa Única Posse
(Nia Sola Posedaĵo)

Julius Balbin (1917-2006)
Traduzido do esperanto por Júlio César Pedrosa.

No gueto
onde ainda
era possível
fazer amor
eu a encontrei.
Ambos tínhamos dezesseis anos
e nos envergonhávamos
De nossos corpos nus.
Tomando um ao outro pelas mãos
Abraçávamo-nos timidamente.

No campo de concentração
fomos separados
pelo arame farpado
mas nosso ardor
ignorava barreiras.

Os holofotes
das torres de guarda
espionavam a escuridão
enquanto eu rastejava
na direção das barracas das mulheres
por sob os arames
e me contorcia
entre vida e morte.

Eu alcançava a porta,
abria-a
e furtivamente deslizava
até onde o sussurro de minha amada
me guiava, à cama de cima,
Onde nua ela esperava.

O pesadelo da realidade
era engolido
pelo abismo
de nosso abraço
e nós íamos
ao topo
de tudo o que é humano
penetrando um no outro.

As mulheres à nossa volta
dormiam suspirando ou roncando
enquanto nós estávamos além de tudo,
contendo nossas paixões
ou silenciando nossos gemidos.
Amávamos
na febre que nossos corpos
nunca conheceram.

Não possuíamos nada
além de um ao outro.
Dividindo esses momentos
nós nos movíamos no ritmo
da lua e das estrelas
que brilhavam acima de nós
eternamente.

BALBIN, Julius. Nia Sola Posedaĵo. In: AULD, William. (Org.). Esperanta Antologio: Poemoj. 1887-1981. Rotterdam: UEA, 1984, pp. 760-762.

Notas:

1- Julius Balbin (1917-2006) nasceu em Cracóvia, Polônia, no seio de uma família judia. Foi preso pelos alemães e passou por vários campos de concentração. Após o fim da II Guerra Mundial estudou em Viena, Áustria, e emigrou em 1951 para os Estados Unidos da América, onde por muitos anos foi professor universitário, retornando à Europa em 2005. Faleceu em Aye, Bélgica. Publicou vários livros de poemas em esperanto.

2- Sobre a tradução: No poema acima, o único sinal de pontuação usado pelo autor é o ponto (.). Acrescentei algumas vírgulas onde vi que elas eram necessárias, devido à estrutura de nossa língua e para não fugir ao sentido do texto original, deixando o restante do texto com a pontuação (ou a falta dela) original, o que, a meu ver, contribui para melhor apreender o clima do poema; creio que a falta de vírgulas é elemento significativo deste poema. O leitor compreenderá por si mesmo e dirá se tenho ou não razão.

3- Publico este texto traduzido no âmbito das celebrações ocorridas por ocasião dos 70 anos da libertação, por tropas soviéticas, do campo de concentração de Auschwitz (em polonês Oświęcim), Polônia, ocorrida em 27 de janeiro de 1945.

4- O texto original pode ser lido na página do atalho a seguir, acompanhado de traduções de J. E. Nagy em húngaro e romeno:
http://www.ipernity.com/blog/199659/338252.

5- Mais sobre Julius Balbin:
Em inglês: “Strangled Cries: A profile of poet Julius Balbin” – Alexander Kharkovsky;
Em esperanto: “Julius Balbin” – Wikipedia.

6- Um artigo de Julius Balbin (em inglês): “The Secret Malady of Esperanto Poetry” (1973).

Santarém, Pará, 31/1/2015. Editado em 17/3/2015.

Um episódio da II Guerra Mundial [por Yevgeny Yevtushenko]

Para ser poeta, não é suficiente saber escrever poemas.
É necessário ter capacidade para defendê-los.
Yevgeny Yevtushenko, Autobiografia Precoce

Yevgeny_Yevtushenko_Autobiografia_precoceLendo a obra Autobiografia Precoce (1963) do escritor, ator e diretor russo Yevgeny Yevtushenko (ou Eugênio Evtuchenko, como ficou conhecido no Brasil), topei com a passagem que reproduzo abaixo, a qual consta no capítulo 4. Trata-se de descrição da reação da população moscovita quando da passagem, pela capital russa, de cerca de 25.000 prisioneiros de guerra alemães. Yevtushenko tinha, à época, 11 anos.

É curiosa e espantosa, ainda que não fosse inesperada, a reação da população, que se dá conta de um aspecto que não contava encontrar em seus inimigos de guerra: humanidade.

Nos tempos atuais, mais do que nunca, fatos como esses nos levam a refletir sobre o autoritarismo e o nacionalismo, que só têm servido para separar os seres humanos, levando-os à mais bizarra das criações humanas: a guerra.

Eis o ocorrido, nas palavras de Yevtushenko:

“Em 1944 minha mãe e eu voltamos a Moscou. Aí, pela primeira vez em minha vida, tive ocasião de ver os inimigos. Se não me engano eram 25.000 alemães que deviam atravessar, em uma só coluna, as ruas da capital.
Todas as calçadas estavam apinhadas de gente cercada pelos soldados e pela milícia. A multidão era constituída, na sua maioria, de mulheres.
Mulheres russas, de mãos deformadas pela dureza do trabalho, com lábios sem batom, ombros magros sobre os quais repousava o peso essencial da guerra. A cada uma delas, provavelmente, os alemães haviam levado um pai, um marido, um irmão ou um filho.
Elas olhavam com ódio na direção de onde se esperava a coluna de prisioneiros.
Depois, esta apareceu.
Na frente, marchavam os generais, trazendo levantados os maxilares maciços, e os ângulos dos lábios contraídos, desdenhosos. Assim, queriam reafirmar a sua superioridade aristocrática sobre a plebe que os havia vencido.
As mãos obreiras das mulheres russas se fechavam coléricas quando eles passavam.
– Fedem a água de colônia, esses sujos! gritou alguém na multidão.
Os soldados e os milicianos tiveram que se apoiar em toda a força de seus corpos para impedir que as mulheres rompessem a barragem.
No entanto, de repente, algo se passou com a multidão.
Chegavam os soldados alemães, magros, sujos, barbados, as cabeças envoltas em ataduras ensanguentadas, apoiados em muletas ou nos ombros de seus camaradas. Passavam cabisbaixos.
Um silêncio de morte se instalou na rua. Não se ouvia nada a não ser o lento arrastar dos seus sapatos e de suas muletas.
Vi uma matrona usando grandes botas russas colocar a mão no ombro de um miliciano.
– Deixe-me passar.
Havia algo na voz daquela mulher. Diante do tom imperativo o miliciano abriu-lhe o caminho. Ela aproximou-se da coluna e tirou de seu blusão um pedaço de pão preto cuidadosamente envolto num lenço. Deu-o a um prisioneiro exausto, que se sustinha com dificuldade.
De repente, outras mulheres seguiram seu exemplo e começaram a jogar pão e cigarros aos soldados alemães vencidos.
Não eram mais os inimigos.
Eram, agora, homens.”

EVTUCHENKO, Eugênio. Autobiografia Precoce. Tradução de Yedda Boechat Medeiros. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1967, pág. 37-39.