Uma boa história…

“Uma boa história não tem necessidade de se parecer com a vida real; é a vida que, com todas as forças, procura assemelhar-se a uma boa história.”
Isaac Babel, “Os meus primeiros direitos de autor”.

In: BABEL, Isaac et al. Contos Soviéticos. Seleção e tradução de Egito Gonçalves. Porto: Editorial Nova, 1973.

China e URSS: amizade colorida?

A propaganda da amizade entre China e União Soviética parece a história de um casal gay que se conheceu na fábrica, casou-se, teve filhos, mudou-se para uma granja e viveu feliz para sempre…

O Poeta-Operário

O POETA-OPERÁRIO
Vladimir Maiakovski (1893-1930)
Tradução de Emílio Carrera Guerra

Grita-se ao poeta:
“Queria te ver numa fábrica!
O quê? Versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem.”
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os aradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos
que façam mover-se a mó!

(1918)

MAIACOVSKI, Vladímir. O Poeta-Operário. In: Antologia Poética. Estudo biográfico e tradução de E. Carrera Guerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Leitura, [ca. 1965]. p. 146-147.


Vladimir V. Maiakovski (1893-1930), artista e revolucionário, foi um dos principais nomes da literatura russa no século XX. Mais sobre ele aqui:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski

Santarém, PA, 18/7/2017. Leia e curta também no Blogspot.

Desomenageando Stálin

littell_mandelstamEm 1933, o poeta russo Óssip Mandelstam compôs um poema contra Josef Stálin, então dirigente máximo da União Soviética. O Epigrama a Stálin foi divulgado apenas a uns poucos amigos, mas de alguma forma chegou ao conhecimento da polícia secreta soviética NKVD e Mandelstam foi preso no ano seguinte.

Depois de algum tempo encarcerado na infame prisão de Lubianka, em Moscou, Mandelstam foi sentenciado a três anos de exílio, devendo residir em algum lugar fora das doze maiores cidades da URSS – era a punição conhecida sob o código menos 12. Dirigiu-se com sua esposa Nadejda a Voronej, na província do mesmo nome. O casal viveu lá com dificuldades até que, findo o tempo de exílio, retornou a Moscou clandestinamente, pois não tinha recebido permissão para residir fora de Voronej.

Em 1938, Óssip Mandelstam foi novamente preso e sentenciado a cinco anos de trabalho num campo de prisioneiros. Faleceu em Vtoráia Retchka, na região de Vladivostok, em dezembro do mesmo ano, de causas nunca esclarecidas, possivelmente devido à sua saúde já debilitada, agravada pelas péssimas condições da viagem e do alojamento, frio e fome.

Perecia naquele gulag um dos mais importantes escritores russos do século XX.

A tradução que reproduzo abaixo é a que consta na edição brasileira do romance The Stalin Epigram de Robert Littell.

Epigrama a Stálin

Óssip Mandelstam

Surdos na terra que pisamos nós vivemos.
A dez passos de nós, quem ouve o que dizemos?
O alpinista do Krêmlin eu ouço há meses:
É um assassino massacrando os camponeses.
Os dedos gordos como larvas mela
E, em chumbo, cai-lhe o verbo de sua goela.
Torto nos vê o bigode de barata.
E a bota que no brilho se remata.
Em torno a choldra de pescoço ralo
E de semi-homens baba, em seu badalo.
Nitre, ronrona, gane
Se ele lhe palre, ou as mãos abane.
Um a um forjando leis, arremessadas
Ferraduras na testa, olho, beiradas.
E matar sempre é benfeito
Para esse osseta de peito.

LITTELL, Robert. De Mandelstam para Stálin: Um Epigrama Trágico. Tradução de Mauro Gama. Revisão de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 105-106.

Adendo:
A certa altura do romance de Robert Littell, Óssip Mandelstam diz o seguinte:

“Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso.”

A Rússia tem longa tradição de enviar escritores para o cárcere. Na época dos czares, autores como Fiódor Dostoiévski e Mikhail Liérmontov estiveram na prisão, assim como o pai do romancista polonês Joseph Conrad. Já na União Soviética, Mandelstam e Isaak Bábel morreram em campos de prisioneiros; Soljenítsin sobreviveu aos gulags e escreveu sobre eles.

Em ambos os regimes, quem não era preso sofria censura – como ocorreu a Nikolai Gógol – ou era lançado no ostracismo, como Bóris Pasternak, que recebeu o Nobel de Literatura após publicar Doutor Jivago no exterior – sem autorização do Estado, é claro.

stalin
Imagem típica e oficial do incansável Stálin, o Pai dos Povos, de cujas decisões sábias e ação enérgica dependiam a vida e morte de milhões de pessoas.

Enquanto o regime soviético lançava na prisão ou executava escritores não alinhados a ele, o Estado outorgava o Prêmio Stálin ou Lênin a escritores que louvavam Stálin ou os feitos da Revolução, contribuindo para o culto da personalidade do líder, tão típico de regimes totalitários; ou aos que se ajustavam ao realismo literário socialista inspirado por Jdanov.

Pergunto-me o que foi feito de tantas obras que receberam tais prêmios soviéticos: caíram no esquecimento ou foram expurgadas do currículo dos laureados? Pergunta retórica, pois sei de um escritor laureado com o Prêmio Stálin cuja obra premiada está fora de catálogo há 60 anos e, pelo andar da carruagem, tão cedo não será novamente editada.

Seja como for, o Prêmio Stálin e o Prêmio Lênin não eram menos políticos do que o desejadíssimo Prêmio Nobel; apenas se tornaram politicamente incorretos, incômodos e indesejáveis para muita gente que os recebeu, pois os tempos mudam.

Da Bielorrússia à Geórgia

Mapa (em inglês) com parte da Europa e Cáucaso, mostrando alguns dos estados originados do esfacelamento da URSS e da Iugoslávia. Fonte: http://map-europe.blogspot.com.br/2013/01/eastern-europe-regions-map-detail.html
Mapa (em inglês) com parte da Europa e Cáucaso, mostrando alguns dos estados originados do esfacelamento da URSS e da Iugoslávia. Fonte: http://map-europe.blogspot.com.br/2013/01/eastern-europe-regions-map-detail.html.

I. Em 1991, o mundo acompanhou a tentativa de golpe da linha dura soviética contra Mikhail Gorbachov, além dos canhonaços a mando do presidente da República da Rússia, Boris Yeltsin – diz-se que este não estava nada sóbrio –, em defesa da ordem vigente. O governo de Gorbachov não caiu ali, mas de nada adiantou, pois meses depois ocorreu a fragmentação da União Soviética. De um dia para o outro… Dosvidániya! Sumiu do mapa uma das potências que polarizavam as forças político-econômicas do mundo de então, e surgiram 15 repúblicas, cada uma com sua(s) língua(s), sua capital, sua moeda etc.

Após quase 25 anos, muita coisa mais mudou no mapa-múndi: uma província da Etiópia desmembrou-se, formando a Eritreia; tornou-se independente Timor Leste, menor e mais jovem país de língua oficial portuguesa; a Tchecoslováquia desmembrou-se em Eslováquia e República Tcheca; a Iugoslávia fragmentou-se também, de forma muito violenta; o Sudão cindiu-se em dois, surgindo daí o Sudão do Sul; e a ex-república soviética da Geórgia luta ainda hoje contra separatistas de províncias que também querem dela desmembrar-se para juntar-se à Rússia – ou, se puderem, cortar de vez o cabresto que as liga a esta.

Só não mudou a confusão que toma conta da imprensa brasileira com relação aos nomes de novos estados que surgiram após 1991: conforme o jornal, seja ele impresso ou virtual, transmitido por rádio ou televisionado, o nome de um único país pode ter várias grafias e pronúncias diferentes, com ou sem acento gráfico. Vêm-me à mente, neste momento, as ex-repúblicas soviéticas da Bielorrússia e Moldávia.

Essa imprecisão e descuido no uso de nomes geográficos atrapalha muito os leitores, principalmente os estudantes, que passam a ter dúvidas quanto às formas corretas; mais espantoso ainda é o fato de que, em quase todos os casos, tudo isso poderia ser evitado – pelo menos em parte – com a simples consulta a uma boa enciclopédia ou ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, também conhecido como VOLP, da Academia Brasileira de Letras.

II. Os nomes das duas ex-repúblicas soviéticas que cito acima – Bielorrússia e Moldávia – são os mesmos que todos aprendemos quando estudamos geografia (eu os aprendi ainda na década de 1980) e encontram-se nos dicionários, enciclopédias e na maior parte dos órgãos de imprensa. Alguns dos principais jornais brasileiros, porém, teimam em manter as formas Belarus e Moldova, tomadas do inglês, o que causa confusão nos leitores e nos estudantes, que ficam sem saber a forma correta desses nomes em português.

Devido à sua ortografia predominantemente etimológica, a língua inglesa e a francesa tomam de empréstimo palavras estrangeiras sem alterar-lhes a grafia, apenas adaptando a pronúncia delas a seu sistema fonológico; por isso a quase total imprevisibilidade da pronúncia e da grafia do inglês, principalmente, o que exige sua indicação nos dicionários e enciclopédias naquela língua. Não é o caso do português, que, apesar de sua grafia em parte etimológica (em que as palavras são grafadas de acordo com a grafia da língua de origem), possui normas bem definidas quanto aos demais casos.

Exemplifico: grafamos a palavra rosa com S porque era assim grafada em latim, ainda que a pronúncia fosse diferente da nossa; o mesmo para gesso, exército, mesa, cedo, Egito, Escócia (de gypsum, exercituum, mensa, citu, Aegyptus, Scotia, respectivamente, dos quais aquelas palavras vieram através do latim, seja o vulgar ou o clássico). Por isso, muitos nomes geográficos, principalmente os mais antigos e tradicionais, já possuem forma vernácula portuguesa, ou podem vir a tê-la, de acordo com nossas normas ortográficas. O fato de alguns nomes terem sido deixados de lado pela imprensa nos últimos anos não impede que as formas vernáculas sejam empregadas: as cidades alemãs de Estugarda, Francoforte e Lípsia são mais conhecidas no Brasil por seus nomes alemães: Stuttgart, Frankfurt e Leipzig, respectivamente, enquanto os nomes tradicionais continuam a ser usados em Portugal – assim como os falantes de inglês, francês e espanhol, os portugueses não têm vergonha de sua língua – que também é a nossa, até prova em contrário.

Lembro-me bem de, num mesmo canal de televisão, durante a Olimpíada de Pequim (2008), ter ouvido e visto a Bielorrússia ser chamada assim e de outras duas formas diferentes: Belarus (oxítona) e Belárus (paroxítona, grafada com ou sem acento gráfico). Quatro anos depois, na Olimpíada de Londres, o caso repetiu-se.

Os bielorrussos são um povo eslavo, e formam com os russos e ucranianos, seus parentes mais próximos, um dos subgrupos linguístico-culturais eslavos (as três línguas são escritas com letras cirílicas, assim como o búlgaro, o macedônio e o sérvio). A Bielorrússia (ou Rússia Branca, como se dizia antes) é assim chamada – entre outras hipóteses – por não ter seu território caído sob o domínio mongol ou tártaro (donde viria uma suposta pureza étnica eslava, sem miscigenação com povos conquistadores não eslavos).

Não imagino o que pode ter levado jornalistas a desprezar a forma já consagrada Bielorrússia, empregada nos livros escolares, dicionários, enciclopédias e obras de referência, para adotar a grafia Belarus; é possível que se tenha traduzido (e mal) uma notinha em inglês de alguma agência internacional, e o desconhecimento (?!) do assunto, aliado à falta de consulta de uma enciclopédia em português – costume bem arraigado em nossa cultura, pois temos pouca intimidade com dicionários e obras de referência –, teve como resultado esta barafunda toponímica.

III. Diga-se o mesmo do nome da Moldávia, país de língua e cultura predominantemente romenas: é parte do território conhecido em outros tempos como Bessarábia; no início do século XX a porção de língua romena juntou-se à Romênia, sendo mais tarde anexada pela União Soviética e formando a República Socialista Soviética da Moldávia. Tornou-se independente em 1991.

É difícil entender o porquê do uso do nome Moldova na imprensa brasileira atual, se até em histórias em quadrinhos se registrava a forma vernácula portuguesa. Lembro-me de quando, na adolescência, lia gibis (revistas em quadrinhos) de super-heróis, dentre os quais os das personagens da DC (Detective Comics). A personagem Jason Blood (criação de Jack Kirby), um estudioso de ciências ocultas e misticismos diversos, alter-ego de Etrigan, transformava-se neste ser demoníaco ao proferir certo encantamento:

“Abandone a forma humana vilã, erga-se o demônio Etrigan!”

Esta personagem tinha ligações com certo castelo Branek, situado no coração da… Moldávia! As editoras Ebal e Abril, ao editar suas revistas, usavam a forma Moldávia, não Moldova, que só entrou em português brasileiro na década de 1990 e porque, assim como Belarus, é a forma usada em inglês.

Diga-se, de passagem, que ambas as editoras, principalmente a Abril, neste quesito, eram irrepreensíveis: suas publicações em quadrinhos, além da qualidade gráfica, primavam pela excelência do texto, bem traduzido, bem redigido e com muita criatividade – como se via nos procedimentos de tradução e adaptação dos nomes de personagens de editoras estrangeiras, como Marvel, DC e Disney. Mas a Ebal, lamentavelmente, extinguiu-se há 20 anos, e quanto à Abril, não sei como andam as coisas por lá hoje, pois deixei de ler histórias em quadrinhos…

Imagino dois focas (ou nem tão focas assim) numa redação, recebendo por fax, telex, videotexto – ou pelo correio, mesmo, quem sabe (ora, era assim que se comunicava antes da Internet!) – a notícia da queda do regime dos sovietes… (Alguém ainda se lembra do que era isso?) Junto vem um mapa, feito nos States, com a divisão política surgida. Alguém exclama, embasbacado com a novidade, esquecido (!?) das aulas de geografia do ginásio e colegial (atuais 2° ciclo do ensino fundamental e ensino médio, respectivamente):

– “Puxa! Você sabia que a União Soviética era constituída de 15 repúblicas?”
– “Nããããão… Puxa, que diferente! O que está escrito aqui? Bélarus… Belárrius?”
– “E aqui: Móldouva… Moldouva?”
– “Sei lá… Mas vamos escrever isso aí mesmo, é o que os gringos usam. Fica maneiro.”
– “Só…”

E assim a confusão se propaga…

Mapa do Cáucaso, em que se veem a Geórgia, Abcásia, Ossétia do Sul e Chechênia, além de outras áreas em constantes conflitos étnicos. Fonte:
Mapa do Cáucaso, em que se veem a Geórgia, Abcázia, Ossétia do Sul e Chechênia, além de outras áreas em constantes conflitos étnicos. Fonte: Wikipedia.

IV. Mas voltemos ao que nos interessa.

Bandeira da Chechênia. Fonte: Wikipédia.
Bandeira da Chechênia. Fonte: Wikipédia.

Vê-se também aqui e ali a forma Tchetchênia (com pronúncia imitada do inglês), desnecessária, pois a forma vernácula portuguesa é Chechênia.  Esta é uma república que faz parte da Federação Russa e enfrenta um forte movimento que deseja separá-la da Rússia e formar um estado independente. Outra palavra na mesma situação é Chuváchia, nome de outra república russa, a qual vemos grafado também como Tchuváchia.

Mas por que devemos dizer e escrever Chechênia e não Tchetchênia, Chuváchia e não Tchuváchia? O som representado em inglês e espanhol pelo dígrafo CH, em italiano por CI, em francês por TCH e em alemão pela sequência TSCH, não existe como fonema em português, ocorrendo apenas como variante (alofone ou alófono) posicional do fonema /t/ no português falado em certas partes do Brasil, como RJ, MG, ES, partes de SP e de estados do Norte e Nordeste.

No português falado nessas áreas brasileiras, quando o fonema /t/ vem seguido de /i/ (ou de um /e/ átono que se reduziu a [i]), ele assume a forma sonora variante [tch], como nas palavras tio, pátio, Tiago, títere, tinto, batida, vítima, ático, leite, que são pronunciadas como [tchiu], [pátchyu], [tchiagu], [tchíteri], [tchintu], [batchida], [vítchima], [átchiku], [leytchi]; em outros locais, o /t/ assume a forma [tch] quando vem precedido de /i/: oito, dezoito, biscoito, eita soam como [oytchu], [dezoytchu], [biskoytchu], [eytcha], o que constitui um fenômeno mais raro; sei que ocorre (ou ocorria) em alguma parte de Pernambuco, pois conheci pessoas do interior daquele estado cujo dialeto apresentava essa variante de /t/.

(Nota: Esse [y] representa o /i/ átono e breve de palavras como /pai/, /leite/ etc. Nas transcrições, usando algumas combinações gráficas, procurei facilitar a compreensão das representações fonéticas para os não versados em fonologia e fonética.)

Portanto, palavras que nas línguas acima e em outras apresentam esse som TCH mantêm, em português, a grafia com CH, como cheque (palavra originária do inglês check), pelo que a pronúncia é como a de chave. As exceções, além das variantes regionais de /t/ citadas acima – variantes de pronúncia, não de grafia –, são: tchê (do espanhol platino che), tchau (do italiano ciao) e o substantivo-adjetivo tcheco (a) e seus derivados (por imitação da pronúncia e grafia francesas tchèque); neste último caso há as formas mais antigas checo (a)Checoslováquia etc., menos usadas, porém, e também corretas e registradas nos dicionários e vocabulários da Academia Brasileira de Letras.

O mesmo procedimento devemos ter, então, com os nomes Chechênia, checheno (a), Chuváchia, chuvache e derivados, além de outros casos análogos: mesmo que a pronúncia original seja com o som [tch] (em russo as pronúncias são, respectivamente, Tchétchniya, e Tchuváchiya, aproximadamente), devemos grafar sempre com CH, pronunciando à maneira portuguesa.

As formas portuguesas são, portanto, com CH: Chechênia, Chuváchia.

V. Para concluir, falemos da Geórgia, outro país que voltou a ocupar as manchetes e o interesse internacional há alguns anos (não confundir com o estado norte-americano homônimo), devido a duas de suas regiões autônomas se terem declarado, de forma unilateral, independentes: Ossétia do Sul e Abcázia. Quanto a esta, costumam-se encontrar também em português as grafias Abecázia, Abcásia e Abecásia, o que mostra haver ainda muita confusão quanto à forma oficial em nossa ortografia; os órgãos competentes, entre eles a Academia Brasileira de Letras, ainda não se manifestaram sobre o assunto, se é que um dia o farão.

Brasão de armas da Abecásia. Fonte: Wikipedia.
Brasão de armas da Abcázia. Fonte: Wikipedia.

Seja como for, as formas com Z são condizentes com o étimo russo, cuja transliteração é Abkháziya, donde veio a forma inglesa Abkhazia, empregada desnecessariamente no Brasil; as formas com S remetem ao nome latino da região, Abascia. Como não existe em português o fonema russo representado nas transliterações internacionais pelo dígrafo KH (existe em espanhol, representado por J: mujer, jamón, eje, Alejo), devemos, em português, reduzi-lo a C, neste caso. Em espanhol se grafa Abjasia, em italiano Abcasia, o que é motivo para que a forma portuguesa tenha S, como nestas línguas-irmãs do português o que talvez seja também a explicação para as formas portuguesas com S, como nestas línguas-irmãs do português.

Como se resolve tal impasse? O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) registra a forma gentílica abcázio, com Z, o que significa que o nome desse país em português deve ser Abcázia, também com Z, portanto, e mais próxima do étimo.

O nome da Geórgia em georgiano, língua do país, é Sakartvelo, e em russo é Grúziya. Os georgianos são um povo de origem caucásica e majoritariamente cristão ortodoxo, que habita há mais de 2.000 anos aquela região entre a Rússia e a Turquia, que lhe disputaram o território e hoje buscam expandir sua influência ali. A língua georgiana não teve, até o momento, seu parentesco relacionado a outras línguas, permanecendo com classificação isolada.

Bandeira da Geórgia, ex-república soviética
Bandeira da Geórgia, com cruzes de São Jorge. Fonte: Wikipedia.

O nome Geórgia, usado nas línguas europeias ocidentais para designar aquele país, possivelmente lhe foi dado devido à grande difusão ali do culto a São Jorge, que segundo a tradição ortodoxa foi introduzido na região por Santa Nina da Geórgia, nascida na Capadócia, como São Jorge, e tida como sobrinha deste santo. São Jorge é o padroeiro do país – assim como nos países católicos romanos, é santo muito popular nos países católicos ortodoxos.

O georgiano mais famoso foi certo Ioseb Besarionis dze Djughashvili, mais conhecido como Josef Stalin.

georgian-transliteration
Um dos mais belos alfabetos, o georgiano, com uma transliteração em caracteres latinos. Fonte: http://www.mochileiros.com/georgia-nao-o-estado-americano-mas-o-pais-do-caucaso-t102487.html

Santarém, Pará, 11/9/2012. Editado em 14/9/2015.

Leia também: Hóquei, handebol e hanseníase.

Dia Internacional da Mulher… à moda soviética!

Quando comecei a estudar o esperanto, em 1992, uma das grandes novidades para nós iniciantes era a possibilidade de contato com pessoas de outras partes do mundo.

Telefonar para o exterior era loucura (se até mesmo possuir linha telefônica era um luxo no Brasil!), os boatos sobre uma tal Internet eram algo meio futurista demais, nem se pensava em e-mail, MSN, Skype, redes sociais…

A solução era o velho correio, inventado (dizem) pelos persas há mais de 2.500 anos. Trocávamos cartas, cartões postais, selos usados, fotos, bilhetes de trem e metrô exóticos, calendários antigos em línguas desconhecidas…

Um dos meus correspondentes era um ucraniano, de quem recebi estes dois cartões postais com texto russo, alusivos ao Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março. Ambos são da década de 1980, portanto são da era soviética.

Facilmente se deduz que a frase em russo 8 MAPTA significa “8 de março”.

INTERNACIA VIRINA TAGO… SOVETUNIE!

Kiam mi eklernis Esperanton, en 1992, unu el la novaĵoj por ni komencantoj estis la eblo kontakti homojn el aliaj regionoj de la mondo.

Telefonado al eksterlando estis frenezaĵo (eĉ posedi telefonon estis luksaĵo en Brazilo!), la onidiroj pri ia Interreto ŝajnis tro futurismaj, oni eĉ ne pensis pri MSN, Skajpo, sociaj retejoj…

La solvo estis uzo de la malnova poŝto, inventita (oni diras) de la persoj antaŭ pli ol 2.500 jaroj. Ni interŝanĝis leterojn, poŝtkartojn, poŝtmarkojn, fotojn, ekzotajn metroajn kaj fervojajn biletojn, kalendarojn en nekonataj lingvoj…

Unu el miaj korespondantoj estis ukraino, de kiu mi ricevis ĉi tiujn du ruslingvajn poŝtkartojn rilatajn al la Internacia Virina Tago, festata je la 8-a de Marto. Ambaŭ estas el la 1980-aj jaroj, do el la Sovetunia erao.

Oni facile vidas, ke la ruslingva frazo 8 MAPTA signifas “8-a de Marto”.

Santarém, PA, 3/8/2015. Editado em 3/8/2016.

Um episódio da II Guerra Mundial [por Yevgeny Yevtushenko]

Para ser poeta, não é suficiente saber escrever poemas.
É necessário ter capacidade para defendê-los.
Yevgeny Yevtushenko, Autobiografia Precoce

Yevgeny_Yevtushenko_Autobiografia_precoceLendo a obra Autobiografia Precoce (1963) do escritor, ator e diretor russo Yevgeny Yevtushenko (ou Eugênio Evtuchenko, como ficou conhecido no Brasil), topei com a passagem que reproduzo abaixo, a qual consta no capítulo 4. Trata-se de descrição da reação da população moscovita quando da passagem, pela capital russa, de cerca de 25.000 prisioneiros de guerra alemães. Yevtushenko tinha, à época, 11 anos.

É curiosa e espantosa, ainda que não fosse inesperada, a reação da população, que se dá conta de um aspecto que não contava encontrar em seus inimigos de guerra: humanidade.

Nos tempos atuais, mais do que nunca, fatos como esses nos levam a refletir sobre o autoritarismo e o nacionalismo, que só têm servido para separar os seres humanos, levando-os à mais bizarra das criações humanas: a guerra.

Eis o ocorrido, nas palavras de Yevtushenko:

“Em 1944 minha mãe e eu voltamos a Moscou. Aí, pela primeira vez em minha vida, tive ocasião de ver os inimigos. Se não me engano eram 25.000 alemães que deviam atravessar, em uma só coluna, as ruas da capital.
Todas as calçadas estavam apinhadas de gente cercada pelos soldados e pela milícia. A multidão era constituída, na sua maioria, de mulheres.
Mulheres russas, de mãos deformadas pela dureza do trabalho, com lábios sem batom, ombros magros sobre os quais repousava o peso essencial da guerra. A cada uma delas, provavelmente, os alemães haviam levado um pai, um marido, um irmão ou um filho.
Elas olhavam com ódio na direção de onde se esperava a coluna de prisioneiros.
Depois, esta apareceu.
Na frente, marchavam os generais, trazendo levantados os maxilares maciços, e os ângulos dos lábios contraídos, desdenhosos. Assim, queriam reafirmar a sua superioridade aristocrática sobre a plebe que os havia vencido.
As mãos obreiras das mulheres russas se fechavam coléricas quando eles passavam.
– Fedem a água de colônia, esses sujos! gritou alguém na multidão.
Os soldados e os milicianos tiveram que se apoiar em toda a força de seus corpos para impedir que as mulheres rompessem a barragem.
No entanto, de repente, algo se passou com a multidão.
Chegavam os soldados alemães, magros, sujos, barbados, as cabeças envoltas em ataduras ensanguentadas, apoiados em muletas ou nos ombros de seus camaradas. Passavam cabisbaixos.
Um silêncio de morte se instalou na rua. Não se ouvia nada a não ser o lento arrastar dos seus sapatos e de suas muletas.
Vi uma matrona usando grandes botas russas colocar a mão no ombro de um miliciano.
– Deixe-me passar.
Havia algo na voz daquela mulher. Diante do tom imperativo o miliciano abriu-lhe o caminho. Ela aproximou-se da coluna e tirou de seu blusão um pedaço de pão preto cuidadosamente envolto num lenço. Deu-o a um prisioneiro exausto, que se sustinha com dificuldade.
De repente, outras mulheres seguiram seu exemplo e começaram a jogar pão e cigarros aos soldados alemães vencidos.
Não eram mais os inimigos.
Eram, agora, homens.”

EVTUCHENKO, Eugênio. Autobiografia Precoce. Tradução de Yedda Boechat Medeiros. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1967, pág. 37-39.