Ladrão por ladrão…

(Foto por Evan Velez Saxer em Pexels.com.)

Uma das personagens mais infames e execradas da história da Amazônia brasileira foi Sir Henry Wickham (1846-1928), um faz-tudo inglês sobre o qual o jornalista Joe Jackson escreveu um livro, publicado no Brasil com o sugestivo título de O Ladrão no Fim do Mundo (Objetiva, 2011).
Ladrão? Sim, senhoras e senhores. Ladrão. Mas também biopirata, contrabandista, vagabundo, herói do Império… a depender do ponto de vista.
“‘Que foi que ele roubou? Que foi que ele fez?’ Os brotos responderam todos de uma só vez…”
Não, não, não, não. O malandro do Wickham não roubou um coração nem uma joia pendurada num cordão; seu roubo foi de muito maior monta: ele contrabandeou para a Inglaterra sementes de seringueira (Hevea brasiliensis), que foram cultivadas e melhoradas nos laboratórios botânicos de Sua Majestade.
Em sua perambulação pelo mundo, Wickham chegou à cidade paraense de Santarém em 1871, onde morou por alguns anos, tentando cultivar seringueiras. Encontrou apoio na comunidade de norte-americanos, que era numerosa e importante na região. Com certeza ele se sentiu em casa…
Muita gente não sabe que os estadunidenses confederados que emigraram para o Brasil após a derrota na Guerra Civil Americana (1861-1865) não se estabeleceram apenas no interior de São Paulo, onde seus descendentes ainda hoje fazem Festas Confederadas, com trajes e comidas da época, e hasteiam bandeiras da Dixieland; muitos americanos se fixaram em outras partes do País, como em Santarém, no Pará. Algumas famílias e indivíduos ficaram pouco tempo em Santarém e retornaram aos Estados Unidos, mas várias famílias americanas se estabeleceram definitivamente na região Oeste do Pará, deixando seus sobrenomes na antroponímia local, e parte de seus descendentes paraenses ainda se orgulha de sua origem confederada.
Mas voltemos a Henry Wickham. Em 1876, possivelmente com a ajuda de gente da região, Wickham juntou, empacotou e acondicionou cuidadosamente em cestos cerca de 70 mil sementes de seringueira, enganou os agentes da fiscalização em Belém do Pará e levou as sementes para a Inglaterra. As mudas conseguidas a partir dessas sementes foram plantadas em possessões britânicas no Sudeste Asiático, e essas seringueiras de além-mar, sem as pragas e outros empecilhos naturais amazônicos, adaptaram-se muito bem lá, produziram muito e causaram grande impacto no mercado internacional de látex. Era o fim do monopólio sul-americano da borracha, e dos efeitos dessa débâcle a Amazônia brasileira demorou muito a se recuperar – se é que se recuperou…
Anos depois, sua contribuição para o Império Britânico seria, enfim, reconhecida, e graças a isso Wickham seria armado cavaleiro de Sua Majestade. De vagabundo a gentleman, de biopirata a Sir!
Mas este artiguinho não se acaba aqui. A história humana é complicada, a brasileira é ainda mais, e as coisas nunca são tão simples como parecem… Passemos da borracha para o café.
Ainda me lembro das aulas de história do antigo ginásio. Aprendi então que o cultivo do café foi introduzido no Brasil, mais precisamente na então província do Grão-Pará, por Francisco de Melo Palheta (1670-1750), militar luso-brasileiro nascido em Belém. Palheta, numa missão para restabelecer a fronteira com a Guiana Francesa, foi até Caiena, onde conseguiu, clandestinamente, sementes e mudas de cafeeiro, que ele plantou e cultivou em suas terras na cidade paraense de Vigia.
Segundo consta, as sementes e mudas foram um presente da esposa do governador de Caiena… Qual terá sido a ligação entre Palheta e a esposa do governador? Não o sei, apenas suponho. Já nos dias atuais não adiantaria esconder o affair, pois uma hora ou outra ficaríamos sabendo de tudo através da imprensa de fofocas.
O cultivo do café era assunto de Estado na França, na Holanda e na Inglaterra, que exerciam grande controle de suas colônias para evitar o contrabando de suas sementes e mudas para os concorrentes. Mas os franceses não esperavam que a esposa do governador de Caiena fosse generosa além da conta com o enviado da Coroa Portuguesa, não menos ladrão de “commodities” do que outros antes e depois dele, incluindo-se na longa lista nosso conhecido Wickham.
O resto é história. A cultura do café espalhou-se pelo País, e o “ouro negro” dominou nossa economia até o século XX. No Império e na República, o Brasil ficou sob o domínio do Rei Café por muito tempo.
Pois é isto: ora roubando aqui, ora sendo roubado ali, assim também se fez a história do Brasil.
Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.

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Lollapalooza de velha

Não me importo com as crenças alheias. Religião é assunto pessoal, coisa própria de cada um, e ninguém deve intrometer-se nisso. Respeitem-se as pessoas e suas crenças e evitar-se-ão problemas. Cada macaco no seu galho, cada um no seu quadrado.
Foi o que pensei quando fiquei sabendo, hoje, que um conhecido humorista da TV foi criticado porque debochou da procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre anualmente em Belém do Pará há mais de 200 anos, chamando-a de “Lollapalooza de velha”.
Pensei também: “Esse cara está brincando com fogo, querendo ser cancelado”. Não sou favorável a nenhum tipo de censura, mas acho que alguns humoristas batem pesado e deveriam conter um pouco a língua para evitar problemas.
Mas logo depois vi que o humorista em questão é Murilo Couto, que é paraense, logo tem lugar de fala nativo e cativo para criticar e mangar à vontade de coisas do Pará. Ele sabe do que fala e o que faz.
Tudo em casa, então! Nada que não se resolva civilizadamente, roendo umas pupunhas e tomando um cafezinho ou suco de bacuri com bolo-podre. Ou não?
Seja como for, não nos intrometamos nessa contenda, que é assunto interno, “interna corporis” dos paraenses.
Sapo de fora não chia.

Santarém, Pará, 24/10/2021.
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#ciriodenazare #murilocouto

Açaí com bife

Em seu Vocabulário de Crendices Amazônicas, o erudito paraense Osvaldo Orico (1900-1981) registrou o seguinte no verbete açaí:

Euterpe oleracea, Mart. – A mais festejada das palmeiras da várzea. Do seu fruto extrai-se a popular bebida da região: um vinho grosso e arroxeado, que se toma com açúcar e farinha e é, ao mesmo tempo, o regalo dos ricos e a sopa dos pobres. Depois do meio-dia, em várias cidades da Amazônia, é comum ver-se em certas casas de comércio e até em casas particulares, uma bandeira vermelha na porta. Dentro e fora das casas um movimento constante de rapariguinhas e moleques com grandes cuias na mão. Não há que errar. Vende-se ali o açaí, o vinho por excelência da região. Onde o açaí deixa de ser uma realidade, para tornar-se uma crendice, é neste ponto: o paraense preza tanto essa beberagem que chega a dizer:
“Quem vai ao Pará, parou; tomou açaí, ficou.”
O açaí é obtido depois de haver sido a fruta amolecida n’água quente e amassada com água fria. Sofre depois a peneiragem, de que resulta aquele caldo grosso a que os indígenas davam o nome de Asai-yukicé.
Existe a suposição de que o puraqué favorece aos nativos a colheita do açaí, despedindo choques elétricos nos açaizeiros e derramando no chão os cachos suspensos. É uma hipótese muito discutível, mas que a imaginação do caboclo acha aceitável.”
ORICO, Osvaldo. Vocabulário de Crendices Amazônicas. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1937. p. 27-28. Ortografia atualizada.

Conheci esta obra há mais de 15 anos – eu nem imaginava que um dia pisaria na Amazônia – e não resisti à tentação de citar todo este verbete do delicioso livro de Orico, ainda que aqui só um trecho nos interesse mais diretamente.

Quando cheguei a Santarém, topei com as mesmas bandeiras vermelhas em diversos pontos da cidade, mas reparei que estavam postas na frente de açougues. Perguntei a uma pessoa conhecida o que significavam, e ela me disse que indicavam a chegada de carne fresca. E esses açougues não vendem açaí, apenas carne – é o que geralmente se espera.

Não demorou muito e encontrei as tais bandeiras vermelhas ou roxas dos pontos de venda de açaí. Mas com um pormenor: as bandeiras que indicam os pontos de açaí trazem a palavra açaí escrita nelas, com o flagrante objetivo de distingui-las das bandeiras vermelhas da carne.

Nas duas vezes em que visitei a capital do estado, Belém, vi locais de venda e consumo de açaí, alguns com as tradicionais bandeiras vermelhas ou roxas, mas não me lembro de ter visto nenhuma com a palavra açaí escrita.

Será a bandeira vermelha com a inscrição açaí uma inovação aqui surgida, algo típico de Santarém e do Oeste do Pará? Não sei dizer, pois seria preciso pesquisar mais a fundo, inclusive visitando outros municípios da região.

Seja como for, estando-se em Santarém e querendo saborear uma cuiada de açaí com um bom bife, as bandeiras vermelhas ou roxas indicam onde encontrá-los; já tempero e acompanhamentos ficam ao gosto do freguês.

Santarém, PA, 15/3/2018. Leia e curta também no Blogspot.

Felisbelo Sussuarana, poeta santarenense

Meu nome é Felisbelo, um nome raro
que muito diz e não revela tudo;
mas, por capricho do destino rudo,
belo não sou nem sou feliz, é claro…
(Felisbelo Sussuarana por ele mesmo)

Em 10 de outubro de 2012 completaram-se 70 anos da morte do poeta santareno Felisbelo Sussuarana, um dos principais nomes da literatura de Santarém no século XX.

Tomei a liberdade de homenageá-lo, falando um pouco sobre esse poeta, músico e professor; citarei apenas uns poucos dados biográficos, seguidos de uma pequena seleta de seus poemas, variando do gênero lírico ao satírico, os quais transcrevi da biobibliografia de Felisbelo publicada por seu filho Felisberto Sussuarana em 1991, ano do centenário de seu nascimento. Trata-se do livro O Mergulho de Felisbelo Sussuarana no Claro-Escuro do Homem e da Obra, que, a exemplo do título, é um estudo exaustivo da vida e da obra de Felisbelo, reunindo também toda a obra conhecida do autor.

Felisbelo Sussuarana em 1942 (reproduzido de SUSSUARANA, 1991).

Felisbelo Jaguar Sussuarana nasceu em Santarém, Pará, em 28 de abril de 1891, filho de Alexandre Alves Sussuarana e Filomena Nóvoa Sussuarana. Teve três irmãos: Raimundo Jaguar, Lena Jaci e Evarinta. Estudou em Belém, não chegando a fazer curso superior; precisou retornar a sua cidade natal e pelo resto da vida foi autodidata, alcançando grande cultura, demonstrada, entre outras coisas, por seu domínio da língua portuguesa.

Casou-se duas vezes: sua primeira esposa foi Raimunda Miranda; desposou, depois de viúvo, Antônia Ceci, em 1929. Teve dez filhos. Foi músico, ator, professor, fundou e dirigiu jornais (e, obviamente, escreveu neles), jogou futebol e foi diretor de clube esportivo, escreveu para teatro e fez letras de canções. Compôs poemas e textos em prosa. Como professor de português, escreveu artigos sobre a língua portuguesa, tendo-se envolvido – ao que parece, com gosto – em polêmicas gramaticais e filológicas, por meio de artigos, que se sucediam, em jornais da região. Em suma: participou ativa e intensamente da vida cultural de Santarém.

Felisbelo Sussuarana enviuvou pela segunda vez em fevereiro de 1942, e meses depois, em 10 de outubro daquele mesmo ano, faleceu. Wilson Fonseca escreveu à época de seu passamento:

“Santarém perdeu o seu mais ilustre filho, o cérebro mais aprimorado e fecundo nascido sob o sol brilhante da formosa “Pérola do Tapajós” (…). Quando já estava acometido da doença que o vitimou, várias visitas fizemos ao querido amigo e dele sempre ouvimos que não se julgava infeliz, pois do povo de sua terra, somente do povo, sempre frisava, recebia o maior conforto, o que muito o alegrava” (apud SUSSUARANA, 1991, p. 87).

Felisbelo Sussuarana foi admirado e respeitado em sua cidade; isto, porém, não lhe possibilitou publicar seus textos na forma mais perene do livro. Sua vasta produção ficou esparsa em diversos jornais e revistas, além do que ficou inédito e se perdeu. O esforço de amigos, admiradores e familiares salvou muitos de seus escritos, dos quais Wilson Fonseca publicou uma seleção na obra Meu Baú Mocorongo (FONSECA, 2006). Seu amigo Paulo Rodrigues dos Santos, também como ele um autodidata e erudito, disse a esse respeito:

“Embora não tenha intenção de trocadilhar, direi que Felisbelo Sussuarana foi um poeta de raça que se perdeu na roça. Se tivesse vivido em meio mais adiantado, os conterrâneos teriam orgulho de ver seu nome nas antologias nacionais. (…) Lamentável não tivesse o escritor mocorongo um parente, um amigo ou um conterrâneo de recursos que tomasse a peito reunir em volumes, arrancando-a do olvido e da destruição total, a fabulosa produção de Felisbelo, que ainda rola pelas páginas esfrangalhadas de antigos jornais, comida das traças, roída das baratas e delida da ação do tempo… Lamentável e triste para a tradição cultural de nossa terra…” (RODRIGUES DOS SANTOS, 1999, p. 410-411).

O próprio Paulo Rodrigues dos Santos viria a passar por algo semelhante: só com a intervenção de Fernando Guilhon, então governador do Pará, pôde ele ver publicada, em 1971, sua monumental obra Tupaiulândia, extenso repositório de fatos históricos e culturais de Santarém.

Antologia – A produção conhecida de Felisbelo veio a público em livro em 1991, ano do centenário de seu nascimento (SUSSUARANA, 1991). É livro hoje esgotado, e a obra de Felisbelo Sussuarana é ainda pouco ou nada conhecida fora do Pará, e parece-me que também em outras regiões deste enorme estado pouco se sabe dela – é claro que os naturais de Santarém a conhecem e a divulgam. Tomei a liberdade de selecionar alguns poemas de Felisbelo e transcrevê-los aqui, para conhecimento, principalmente, dos leitores de língua portuguesa de outras regiões. A seleção que fiz é pessoal, e sei que não agradará a todos; escolhi os poemas de que gosto mais, e tenho certeza de que outros poderão oferecer uma antologia mais representativa da obra do poeta.

Nos textos que transcrevi, conservei o uso, feito pelo autor, de versos iniciados com letra minúscula, pouco comum entre poetas de língua portuguesa.

Tendo-se passado mais de 70 anos da morte de Felisbelo Sussuarana, toda a sua obra é hoje de domínio público, portanto qualquer pessoa ou instituição pode divulgá-la. Espero que as autoridades, inclusive as estaduais – que tanto amam Santarém e o Oeste do Pará, a ponto de nem sequer aceitarem falar em divórcio… –, aproveitem o ensejo para reeditar a obra de Felisbelo Jaguar Sussuarana, pondo-a ao alcance do público leitor, pois todo autor tem o direito de ser lido.

SELETA POÉTICA DE FELISBELO SUSSUARANA

RIO SÍMBOLO
Soberbo flúmen, Tapajós altivo,
de longe vens nesse lutar sem tréguas,
vivo,
vencendo léguas e mais léguas,
ora a espraiar-te
em fúlgidos lençóis,
ora a estreitar-te
em veios
de oiro cheios,
fertilizando as terras
por onde erras,
altivo Tapajós.

Vens de longe correndo,
vens vencendo
saltos
e cachoeiras
altaneiras,
beijando praias e barrancos altos,
dando vida e valor,
dando alegria
à ubertosa região de que és senhor.

A marcha a te deter quem ousaria,
ó rico e belo flúmen brasileiro?

E vens vindo, vens vindo, prazenteiro,
atrás deixando tudo
nesse rudo
marchar glorioso,
rápido, nervoso,
e nada te detém…

E após tanto lutar e tanta glória,
vens, alcançando rútila vitória,
morrer aos pés da linda Santarém!

Assim do poeta os surtos criadores,
ó belo Tapajós
dos meus amores:
de mundos luminosos e distantes
partem, soberbos, fartos de esplendores,
chispando sóis
e fluidos cintilantes,
e descem, descem, céleres, radiantes,
para deter-se, alfim, nessa arrancada,
vencidos, juntos da Mulher Amada!

VERSOS… VERSOS… VERSOS…
Versos… quantos nem sei, chorando ou rindo
desperdicei no meu peregrinar…
Versos, versos de amor que nasce lindo
e nos ilude para nos deixar…

Versos nascidos em momentos nobres
de ânsias infindas de lutar, vencer…
Versos carpindo desditados pobres,
rimas plangendo agruras do viver…

Versos moldados na amizade terna
que nos enleia e que nos faz feliz…
Versos cultuando a natureza eterna,
glorificando as glórias do país…

Versos festivos, versos de noivados,
rimas gentis, garridos madrigais…
Galanteios medidos e rimados,
doiradas ilusões, não voltam mais…

Versos… quantos nem sei, calmo ou nervoso
qual desperdiçador, quantos compus…
Versos, versos de amor, versos de gozo,
versos feitos de lágrimas e luz…

Versos que eu fiz, cantando a mocidade,
a mocidade em flor do meu torrão…
Versos de dor e de infelicidade,
mas versos naturais do coração…

E quantos versos meus hoje dispersos,
perdidos como os ais dum sofredor…
E até no cemitério eu tenho versos,
a traduzir saudade e alheia dor…

Quando eu morrer, fugindo à desventura,
quem sabe se terei – o mundo é assim –
quem vá deitar na minha sepultura
um punhado de versos sobre mim…

CUIEIRAS
I
São afamadas, são procuradas
as belas cuias de Santarém!
Cuias bordadas, cuias pintadas
como estas minhas, ninguém as tem. Ah!

Para um presente de namorado
que coisa linda, meu bom senhor!
Serviço limpo, bem acabado,
arte, bom gosto, puro lavor.

(Coro)
Para tomar-se um mingau a gosto,
para tomar-se um bom tacacá,
só numa cuia, vaso bem posto
e preferido no meu Pará!

II
Um vinho grosso, roxo e gostoso
do conhecido, belo açaí,
é mais suave, mais saboroso
se numa cuia se bebe aqui. Ah!

Cuias bordadas, cuias pintadas
como estas minhas, ninguém as tem.
São afamadas, são procuradas
as belas cuias de Santarém!

O PEDIDO
Almofadinha fofo e sem dinheiro,
vivendo duns rabiscos que fazia,
o bardo futurista não podia
mais suportar aquele olhar brejeiro.

Enamorou-se logo e, verdadeiro
aquele amor, de certo o mataria
se a divinal e cândida Maria
não fosse engalanar-lhe o lar fagueiro.

E decidiu-se então sem mais aquela
a procurar o pai da jovem bela
para pedir-lhe a mão da filha; o Duarte,

o genitor, porém, que não é tolo,
em vez da mão da filha, seu consolo,
meteu-lhe o pé com força em certa parte.

LONGE DE TI
Hoje estou triste e pesaroso e, certo,
este pesar agora me acabrunha.
Longe de ti vegeto num deserto,
só tendo minha dor por testemunha.

É que, formosa, quando vives perto
do teu cantor que versos te rascunha,
é meu viver, florindo, um céu aberto:
morre a saudade, morre a caramunha.

É que não posso mais sem teu carinho
passar nestas – da vida transitória –
ondas revoltas de perigo cheias.

É que, se longe estás do nosso ninho,
eu sou forçado – que dorida história! –
a remendar, que jeito, as minhas meias.

POLÍTICA
Dois filhos tem Miguel José Veludo
que gêmeos são, nascidos faz um ano;
um, pobrezinho, veio ao mundo – mudo;
o outro, coitado, é surdo como um cano.

Não se apoquente o pobre pai, contudo,
nem se amofine porque, sendo humano,
recebe os golpes do destino rudo
com fortaleza forte de espartano.

Ontem me disse: – Sabes, meu amigo?
Eu, que a doutrina modernista sigo,
um grande plano tenho, alevantado:

Fazer dos dois meninos, com perícia,
quando formados – Chefe de Polícia
o surdo… E o mudo? – O mudo, Deputado.

A ENTREVISTA
Dez horas… dez e meia… As horas voam
e ela não vem, não vem para a entrevista!
Anseio e fremo, e quanto me contrista
a sua ausência… E as onze, lentas, soam…

Do galo, no terreiro, me atordoam
os repetidos cocoricós, e egoísta
do meu amor, maldigo esse corista
a remarcar as horas que se escoam.

Geme o relógio – doze… Meio-dia!
E ela não vem, mentiu-me… Que ironia!…
…………………………………………………………
Escuto: alguém bateu… É o meu amor!

Vou tê-la, enfim, rendida, nos meus braços!
E, antegozando os beijos e os abraços,
descerro a porta… oh! raiva! Era um credor!…

DUMA ANEDOTA
O primo mais a priminha
(o Carlos e a Margarida)
sustentam na sala clara
uma conversa entretida.

De repente, na priminha
o primo pespega um beijo:
“Oh! Carlos, tu me assustaste…”
disse-lhe a prima com pejo.

Já se passam dez minutos
(para as nove faltam dez).
Diz a prima muito séria:
“Carlos, me assusta outra vez?!”

COMEMORAÇÃO CÍVICA
15 de Novembro.
A praça regurgita.
É grande a massa que se agita.
Povo.
Autoridades.
Gente de fato novo.
Crianças das escolas.
Com galhardetes.
Com bandeirolas.
Banda de música.
Orador oficial.
“Meus senhores!
Neste solene momento
puramente nacional,
em que, na praça pública,
todos, irmanados pelo mesmo sentimento,
comemoramos, por entre vibrações interiores,
o dia magno da República…”
E prossegue o discurso
fluente. Escachoante.
Como o curso do rio-mar…
Só se ouve da brisa o brando ciciar.
Peroração.
Surtos magníficos.
Miríficos.
Palmas. Muito bem! Muito bem!
Viva o doutor Juiz de Direito!
Viva o meu compadre capitão prefeito!
Viva o povo de Santarém!
De novo em movimento.
Foguetes doidos furam o ar,
de momento a momento.
A fanfarra torna a vibrar.
“Já podeis, da Pátria filhos,
ver contente a Mãe gentil;
já raiou a liberdade
no horizonte do Brasil…”
A enorme serpe coleia
densa, larga, cheia.
A meninada,
suarenta,
cansada.
O sol caustica. Enfara. Assedenta.
– Para! Para! Psiu! Psiu!
Vai falar o doutor
Promotor!
Transbordante como um rio,
o verbo magistral
atroa.
Alcandora-se. Voa.
Flui. Flui
em destaque.
Citações de Rui.
Versos adoráveis de Bilac.
História de Rocha Pombo.
Torre do Tombo.
Circunvoluções.
Palmas. Hurras. Vivas.
Ovações.
Prossegue a grande serpe coleando.
Vivas roucos. Abafados.
Meninos coxeando
alagados.
Vem a noite, afinal,
pôr termo à bela festa nacional.
Palmas em profusão.
Viva o Brasil!
Viva nossa bandeira!
Viva a República!
Viva a Pátria Brasileira!
A banda executa o Hino.
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
de um povo o heroico brado retumbante…”
Num frêmito divino,
todos cantam. Todos. Delirantes!…
Põe-se em marcha a passeata.
Alas de crianças.
A bandeira auriverde
entre a multidão se perde.
Fitas cor de ouro e de esperança.
Marcha que arrebata.
“Nós somos da Pátria
a guarda,
fiéis soldados
por ela amados;
nas cores de nossa farda
rebrilha a glória,
fulge a vitória…”
– Para! Para! Para!
Estanca o préstito. A casa do Juiz.
Da janela,
sorridente, feliz,
o Juiz, de flor à lapela,
deixa o verbo escorrer…
Flores de retórica.
Pátria.
Liberdade.
Fraternidade.
Obra.
Dever.
Digressão histórica.
Deodoro.
Benjamin.
Rui Barbosa.
Silva Jardim.
E os manifestantes,
“alma febril”,
desfazem o préstito, radiantes,
suados, extenuados,
esfomeados,
mas cheios de Brasil…

FELICIDADE
Quando eu era assinzinho
– como tão longe vai aquele dia! –
para entreter-me, minha mãe bondosa
tomava-me a mãozinha e, cariciosa,
a dedilhar dedinho por dedinho,
rindo, feliz, assim dizia:

– “Dedo mindinho,
seu vizinho,
pai de todos,
fura-bolo
mata-piolho…
Cadê o docinho,
diga, meu filhinho,
que aqui deixei, aqui, na sua mão?
– O rato comeu!…
E o rato, para onde foi o comilão?
– Foi por aqui… por aqui,
por aqui ele correu!…”

E os dedos ágeis, pelo tenro braço,
como quem tamborila,
iam correndo até chegar à axila,
onde a mãezinha, com desembaraço,
cocegava, cocegava,
rindo, feliz, por ver tornar-me em riso.

E hoje, quando vejo em meio à estrada
que, palmilhando, sigo
a passos tardos,
entre espinhos e cardos,
é o Destino que vem brincar comigo
na vida atribulada:

“Dedo mindinho,
seu vizinho,
pai de todos,
fura-bolo,
mata-piolho…
Cadê a felicidade que aqui estava?
Por que a deixou fugir, seu grande tolo?”

E eu nem sei responder se foi o rato,
se foi o gato,
que carregou,
que devorou
o Bem que era só meu e me bastava!…

AUSÊNCIA
Ausência – coração que foi gemendo,
coração que ficou na dor voraz…
Alma que voeja, em ais se debatendo,
em busca de outra já perdida em ais…

Ausência!…
Negação de tudo quanto
traduz na vida a essência
do Prazer…

Em cada extremo um coração em pranto,
e a saudade no meio, a florescer…


Obras consultadas:

FONSECA, Wilson Dias da. Meu Baú Mocorongo. Belém (Pará): Secretaria Estadual de Cultura, 2006. 6 volumes.

RODRIGUES DOS SANTOS, Paulo. Tupaiulândia. 3ª edição. Prefácio de Lúcio Flávio Pinto. Santarém (Pará): Instituto Cultural Boanerges Sena, 1999.

SUSSUARANA, Felisberto. O Mergulho de Felisbelo Sussuarana no Claro-Escuro do Homem e da Obra: ensaio biográfico. Santarém (Pará): Prefeitura Municipal de Santarém, 1991.

Santarém, PA, 20/10/2012. Editado em 26/8/2016.

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Caça-fantasmas em Santarém

Você acredita em fantasmas e aparições? Em almas penadas e assombrações?

Muita gente hoje, em pleno século XXI, ainda crê na existência desses seres sobrenaturais. Há gente que nunca os viu, mas crê que eles existem, pois conhece outras pessoas – fidedignas, assegura-se – que viram uma mula-sem-cabeça ou toparam com uma noiva-cadáver nas proximidades de um cemitério, numa noite escura.

Uma pessoa me contou que, certa vez, um parente seu foi perseguido por um lobisomem numa estrada rural. Ele conseguiu escapar; mas enquanto corria em desabalada carreira, ouvia os uivos distantes do lobo humano e, ao mesmo tempo, sentia seu fungado no cangote…

Também aqui na cidade de Santarém, no Pará – onde as assombrações são mais comumente chamadas visagens – não era diferente há cem ou mais anos.

Numa crônica chamada “Garimpando ao Léu”, publicada no número 1.287 (29/4/1967) do extinto periódico O Jornal de Santarém e recolhida pelo maestro Wilson “Isoca” Fonseca em sua coletânea Meu Baú Mocorongo, o historiador santareno Paulo Rodrigues dos Santos (1890-1974) diz que em outros tempos a cidade de Santarém era “infestada de fantasmas e assombrações de toda espécie: – curupiras, matintapereras, lobisomens, botos, lêmures, trasgos e outras coisas”, havendo inclusive muitas casas “mal assombradas”, que perturbavam os mais supersticiosos.

Mas vejamos o que ele conta sobre um dos fantasmas que noutros tempos assombravam a cidade de Santarém (o cronista não precisa a data, mas o fato deve ter ocorrido entre o fim do século XIX e início do XX):

“Pelas imediações da chamada Rua Nova ou Rua de Cima* [atual Avenida Rui Barbosa] que passava pela frente do atual cemitério [de Nossa Senhora dos Mártires], surgiam vez por outra uns fantasmas de camisolão branco que davam carreiras nos transeuntes retardatários. Esses faziam campo das suas diabruras às proximidades de barracas ocupadas por algumas bonitas mulatinhas solteiras ou casadas, que, aliás, ao que parecia, não temiam a alma do outro mundo e até lhe davam “teco”…

Certo dia ou certa noite, alguns rapazes resolveram apanhar vivo o fantasma do camisolão. Prepararam sigilosamente o cerco e o apanharam com a boca na botija.

Ao ver-se rodeado de ameaçadores cacetes e chicotes, o fantasma se deu a conhecer: – era o delegado de polícia, naqueles tempos intitulado “prefeito de polícia”!…

Com um sorriso amarelo alegou que fora uma coincidência, pois ele também se disfarçara de camisolão para ver se apanhava o verdadeiro fantasma…

O policial livrou-se da surra, mas não se livrou da chacota popular. Ninguém acreditou na sua história.”

SANTOS, Paulo Rodrigues dos. Garimpando ao Léu. In: FONSECA, Wilson Dias da. Meu Baú Mocorongo. Belém (Pará): Secult; Seduc, 2006. 6 v. V. 5, pp. 1343-1344.

* Nota: Atualmente, o Cemitério de Nossa Senhora dos Mártires, o mais antigo da cidade, tem frente para a Avenida São Sebastião, que no início se chamou Rua Novo Mundo. De acordo com Wilde Dias da Fonseca (Santarém: Logradouros Públicos. Santarém (PA): Instituto Cultural Boanerges Sena, 2007. p. 11-12), o logradouro conhecido, à época do fato aqui narrado, como Rua Nova ou Rua de Cima era a atual Avenida Rui Barbosa, não a Avenida São Sebastião. Como se explica isto? Segundo o mesmo Wilde Fonseca, para a abertura da futura Avenida São Sebastião foi preciso recuar a parte da frente do cemitério, que perdeu parte de sua área original; isto quer dizer que a frente do cemitério era bem mais próxima da Avenida Rui Barbosa.

Santarém, Pará, 21/9/2015.

Cuieiras

Cuias pintadas de Santarém, PA - Fonte: www.obidense.com.br
Cuias pintadas de Santarém, PA – Fonte: http://www.obidense.com.br.

CUIEIRAS
Felisbelo Sussuarana, poeta santareno (1891-1942)

I
São afamadas, são procuradas
as belas cuias de Santarém!
Cuias bordadas, cuias pintadas
como estas minhas, ninguém as tem. Ah!

Para um presente de namorado
que coisa linda, meu bom senhor!
Serviço limpo, bem acabado,
arte, bom gosto, puro lavor.

(Coro)
Para tomar-se um mingau a gosto,
para tomar-se um bom tacacá,
só numa cuia, vaso bem posto
e preferido no meu Pará!

II
Um vinho grosso, roxo e gostoso
do conhecido, belo açaí,
é mais suave, mais saboroso
se numa cuia se bebe aqui. Ah!

Cuias bordadas, cuias pintadas
como estas minhas, ninguém as tem.
São afamadas, são procuradas
as belas cuias de Santarém!

Santarém, PA, 11/3/2015. Editado em 6/5/2016. Leia e curta também no Blogspot.

Bem-vindos a Santarém e Alter do Chão!

santarém_av_s_sebastiao_2014-12-31
Foto de Júlio César Pedrosa, 31/12/2014.

Pichação em muro do antigo Estádio Municipal, Av. São Sebastião, perto da esquina com a Tr. Turiano Meira, Santarém, PA:

Srs. turistas, seu dinheiro traz o progresso, mas a sujeira deixada por vocês tira a beleza de nosso paraíso…! Alter do Chão!

Que mais se pode dizer? Bem-vindos a Santarém!