Acidente argentino

Uma jornalista da TV Globo News disse que o cineasta Héctor Babenco, recentemente falecido, era brasileiríssimo, e só “nasceu na Argentina por acidente”.

Quer dizer que nascer na Argentina é acidente?

Aguardo há tempos que os defensores do “politicamente correto” se manifestem contra o preconceito de nossos meios de comunicação contra a Argentina e seu povo. Se não se aceitam comentários ou gracejos desse tipo contra outros grupos, por que aceitá-los quando se referem aos argentinos?

E há ofensas até piores do que esta. Dois exemplos:

  • Em outra TV do tipo news, um jornalista e apresentador, ao referir-se a uma famosa chef argentina radicada no Brasil, e que seria entrevistada por ele, disse que “ela é argentina MAS é gente boa”. Ato falho?
  • Num programa reality show de atendimento médico de urgência, médicos conversam enquanto cuidam de um paciente; a conversa referia-se a algum tipo de procedimento médico: “Está brincando! Duvido que isso tenha sido inventado por um argentino! Já viu alguma coisa boa vir da Argentina?”

E tudo transmitido pela TV!

Esse tipo de preconceito é inculcado em nossa população o tempo todo – e não se trata apenas de rivalidade esportiva.

Dizem que é esta a diferença entre brasileiros e argentinos: enquanto dizemos que Deus é brasileiro, os portenhos TÊM CERTEZA de que Ele NÃO É argentino.

Está explicado, pois!

Santarém, PA, 29/7/2016.

A espada e a toga

Uma coisa para pensar:

Em 1937, Aníbal Ponce publicava sua obra Educación y Lucha de Clases, que se encerra relembrando uma história dos tempos do tirano argentino Juan Manuel Rosas. Em 1842, para conter os focos de agitação e revolta que surgiam em oposição a seu governo nas poucas escolas do país, Rosas nomeou como diretor do ensino primário ninguém menos que o… chefe de polícia!

Nada para espantar-nos. Os latino-americanos nos acostumamos a ver os militares como protagonistas em momentos de agitação política.

Mas parece que as coisas mudaram. Em dezembro de 2001, quando caiu Fernando de la Rúa e a Argentina teve três presidentes em um mês, lembro-me de ter lido um comentário de que nem os militares argentinos queriam assumir o governo de lá.

Hoje no Brasil os militares estão em paz, recolhidos à caserna, respeitando a lei e as instituições como se nada de anormal estivesse acontecendo. Nada “militar”, digamos.

O protagonismo que temos visto é da Justiça: juízes, promotores, procuradores, Ministério Público, ministros do STJ, TCU, TSE, STF…

Enquanto isso, o governador de São Paulo nomeia como secretário de Educação… um desembargador.

Espero que seja apenas coincidência.

Santarém, PA, 15/4/2016.

Não choramos por ti, Argentina!

Ainda que nem sempre reconheçam isso, os brasileiros vivem olhando por cima da cerca para ver o que se passa em seu principal vizinho, a República Argentina. A reação brasileira típica ao que se passa por lá é geralmente a empáfia, às vezes o ódio, raramente a inveja.

A vitória de Mauricio Macri nas eleições presidenciais argentinas deste ano deve ter provocado todos esses sentimentos nos brasileiros, atualmente mesmerizados pela política. Muitos devem, com certeza, ter ficado com inveja dos argentinos, que elegeram um candidato de oposição que pôs fim a 12 anos de governo peronista-kirchnerista. Devem estar perguntando-se: “Que fizemos de errado? Como os argentinos conseguiram isso?” Talvez aprendam com o candidato derrotado, Daniel Scioli, a reconhecer a derrota com altivez e ostentar postura mais republicana.

O candidato eleito Macri promete dar uma guinada na política e na economia da Argentina: pretende, por exemplo, cobrar a aplicação da “cláusula democrática” em relação à Venezuela, devido às denúncias de desrespeito aos direitos humanos, o que pode suspendê-la ou até excluí-la do Mercosul; talvez isso não ocorra (pois depende dos votos de todos os membros do bloco), mas provocará, com certeza, fissuras nas relações da Argentina com os demais parceiros, principalmente o Brasil.

Macri quer também promover reformas na economia, o que pode aproximar o país dos Estados Unidos, recebendo apoio dos investidores internacionais: os portenhos parecem ter em mira o recém-criado Tratado do Pacífico. Aproximando-se dos EUA, a Argentina deixaria de fazer parte do chamado Eixo Bolivariano (!?); de quebra, conquistaria um maior protagonismo na região, talvez arrastando outros vizinhos consigo. É o que talvez preocupe muita gente no Brasil.

Mas não nos incomodemos com isso. O Brasil prepara-se para receber a Olimpíada de 2016 na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de falido, o estado do RJ gasta o que não tem em obras de infraestrutura; a prefeitura da cidade não faz diferente.

A propaganda oficial do evento regozija-se de que conseguimos trazer os Jogos Olímpicos para a América do Sul “antes dos argentinos”…

É isso. Conseguimos sediar os jogos antes da Argentina. De que mais precisamos?

Santarém, Pará, 28/11/2015. Editado em 4/12/2015.