Rapidinhas 14 e 15

#14
Esqueçam aquele clichê segundo o qual, se uma catástrofe extinguir a humanidade, somente as baratas sobreviverão. Sim, é claro que elas sobreviverão, mas com elas sobreviverá também o capitalismo.
Afinal, a julgar pelo avanço acelerado da inteligência artificial, pelo nível de automação cada vez maior das fábricas de hoje e pelo que se prevê para as técnicas de produção no curto e médio prazo, se ninguém apertar o botão DESLIGAR, as fábricas continuarão funcionando, com robôs produtores e fabricadores controlados por outros robôs; a própria bolsa de valores será operada por robôs.
E com certeza as ações mais negociadas e valiosas serão as da SkyNet…

#15
“Não se traduz nome próprio” — disse cheia de certeza a fedelha recém-saída das fraldas e especialista em tudo na Internet.
Não respondi nada. Recolhi-me a minha insignificância.
Aliás, ela deve estar certa. Deve ser por isso que, nas Bíblias em português, o primeiro livro do Novo Testamento se chama “O Evangelho segundo São Matthew”…

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Controle lexical… absoluto!

(Foto: WordPress.)

Há quem defenda que é incorreto dizer “americano” ou “norte-americano” para se referir aos Estados Unidos e seus cidadãos ou coisas, pois haitianos, panamenhos e brasileiros também são americanos, e canadenses e mexicanos, além de americanos, são também norte-americanos. Segundo essas pessoas, a única forma correta é “estadunidense”.
Defensores mais virulentos da palavra “estadunidense” até se ofendem quando topam com os termos “americano” ou “norte-americano” usados nesse sentido, chegando até a destratar quem os empregue assim. Dizem que é ofensivo aos demais povos americanos e norte-americanos o uso desses termos como sinônimos de “estadunidense”.
Aliás, parece que o uso de “estadunidense” vai firmando-se como quase que exclusivo do pensamento de esquerda, enquanto o uso dos demais termos vai caracterizando-se como etiqueta da direita ou dos chamados isentões.
Trata-se de opinião, contra a qual nada tenho, desde que não se queira impor tal uso às outras pessoas; seria ótimo não ter de escolher entre mais de um termo, mas o uso atual de nossa língua consagra as formas “americano”, “norte-americano”, “estadunidense” e “ianque” como sinônimas em várias situações, não havendo erro nenhum em chamar um cidadão dos EUA de “americano” ou “norte-americano”, desde que o contexto o permita.
Mas nem tudo são flores. Quando há tantos termos listados como politicamente incorretos, ofensivos, indesejáveis ou palavras-gatilhos para o que quer que seja, é preciso policiar-se o tempo todo para manter um discurso semântica e lexicalmente coerente e não deixar escapar uma palavrinha sequer que destoe ideologicamente das demais.
Fazer isso por escrito é fácil, pois sempre se pode revisar o texto e substituir os termos indesejados. Já falar ao vivo na TV ou na Internet são outros quinhentos, pois às vezes o termo nos escapa e nem o percebemos.
Foi o que ocorreu há alguns dias com certo intelectual, escritor e comentarista político progressista, que defende o uso exclusivo de “estadunidense” e rejeita as demais formas, que ele considera inadequadas pelos motivos citados acima. Comentando no YouTube sobre a influência política e cultural dos EUA na América Latina e no Brasil, ele disse algo assim:
“… a gente cresceu vendo na TV filmes ESTADUNIDENSES em que os AMERICANOS…”
Pois é… Escapuliu-lhe um “americanos” em lugar de “estadunidenses”. Nada errado aí, nem lexical nem gramaticalmente. E acho que nem ele mesmo percebeu, naquele momento, que usou um termo que ele mesmo considera inadequado e busca evitar. Acontece nas melhores famílias.
Quase todos os países têm um nome oficial, que consta em sua constituição e outros documentos. A França é “République Française”, a Itália é “Repubblica Italiana”, Portugal é “República Portuguesa”, a Bolívia é “Estado Plurinacional de Bolivia”… E vários países têm ou tiveram a locução “Estados Unidos” a compor seus nomes oficiais: até 1967, o Brasil se chamou “Estados Unidos do Brasil”; até 1953, a Venezuela se chamou “Estados Unidos de Venezuela”; a Colômbia e a Indonésia também já foram “Estados Unidos”… e o México ainda se chama “Estados Unidos Mexicanos” – apesar de nenhum desses países ter “estadunidense” como gentílico. Por que, então, os estadunidenses não podem referir-se a seu país como América e a si como americanos se o nome oficial de seu país é “United States of America”?
E pode haver outras complicações no mundo dos gentílicos: afinal, o termo “europeu” pode continuar a ser usado em relação a qualquer país da Europa ou apenas se refere aos que compõem a União Europeia? Ucranianos, suíços, noruegueses e sérvios também são europeus? Por que não se referir aos cidadãos da União Europeia como “euro-unionenses”, por exemplo?
Toda essa discussão é uma bizarra bizantinice.
Lembro-me de ter aprendido, na escola, a evitar a repetição de termos para que o texto não se torne maçante ou enfadonho; há mesmo quem goste de usar sinônimos para ostentar erudição ou opulência lexical. Mas nem sempre se pode lançar mão da sinonímia, pois ou os termos são insubstituíveis ou são técnicos demais, sem falar em artigos, verbos de ligação, preposições e outros elementos gramaticais cuja repetição é incontornável.
Tenho, pois, a tendência de evitar certas repetições; por isso, conforme a situação, e se necessário e possível, uso num mesmo texto as palavras “americano”, “norte-americano”, estadunidense”, “ianque” e outras, se as há, como termos sinônimos e alusivos aos EUA, sem levar em conta a ideia de que o único termo aceitável e possível seja “estadunidense” ou outro. Meu oráculo, guru e mito é o dicionário.
Se você acha que só um termo é possível, aceitável, conveniente e politicamente correto para referir-se a um grupo social, a uma coisa, a um processo ou a uma situação — não há problema nenhum nisso. Mas sugiro treinar o controle lexical para evitar o deslize de usar, sem o querer, um termo inadequado a suas convicções.
Policie-se o tempo todo; perscrute cada palavra na mente antes de falar e enquanto fala; fale pausadamente, deixando sair as sílabas bem devagar… e assim talvez você consiga evitar que, vez ou outra, escape uma palavrinha gentilicamente incorreta.
Use apenas seu termo favorito, pois, riscando de seu glossário os sinônimos dele, e quem sabe se, daqui a alguns anos, sua palavra favorita não se emplacará como a única?
O preço da palavra politicamente adequada e correta é a eterna vigilância do (próprio) vocabulário. E talvez, ao fim e ao cabo, o resultado seja termos um vocabulário cada vez mais restrito e uma fala sem figuras de linguagem nem sinônimos. Este parece ser, aliás, o desejo dos fiscais da palavra alheia.
Bem-vindos à era da pós-sinonímia.

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Lançamento do filme X é realizado na cidade Y

LANÇAMENTO DO FILME X É REALIZADO NA CIDADE Y
🙄🤔
Para que toda essa afetação e verborragia no título de uma notícia? Por que não dizer algo mais simples?
FILME X É LANÇADO NA CIDADE Y — acho que fica bem melhor.
Já faz tempo que reparo na falta de jeito de parte da imprensa ao titular notícias. Teriam deixado de ensinar isso na faculdade? Ou é por causa de não ser mais obrigatório o diploma de jornalismo?

Etenílson comenta: #SotaqueProibido

(Foto: WordPress.)

Nunca pensei que chegaríamos ao ponto de uma pessoa, depois de diversas críticas infundadas, vir a público pedir desculpas por seu sotaque e por ter nascido onde nasceu.
As redes sociais são mesmo uma zosta, uma grande zerda!
Ao saber disso, meu amigo Etenílson, que veio do planeta Xistê para estudar nossa(s) cultura(s), ficou inconformado.
“Mas as línguas terrestres e suas variedades não são todas equivalentes, legitimas e com as mesmas capacidades e direitos? É o que dizem os linguistas de vocês” — disse Etenílson, cheio de razão.
“Sim, você está certo” — disse eu. “Mas é que alguns dialetos e sotaques têm menos direitos que os outros…”

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Bênçãos ou benções?

Por mais incrível que possa parecer, ambas as formas são corretas.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) registra as formas BÊNÇÃO (paroxítona) e BENÇÃO (oxítona) — observe-se o acento circunflexo a marcar a sílaba tônica da primeira forma.
O plural de BÊNÇÃO é BÊNÇÃOS, enquanto o plural de BENÇÃO é BENÇÕES.
Portanto, ainda que BENÇÃO e BENÇÕES sejam pouco usadas e pareçam formas estranhas, são tão corretas quanto as mais usadas.
Por causas diversas, muitas palavras de nossa língua têm formas duplas ou até triplas, todas atestadas em textos de autores de várias épocas e registradas em dicionários e gramáticas.
O mais adequado é preferir a forma corrente e mais usada, mas sempre há quem resgate, propositadamente ou por acidente — sem querer querendo! (ou apenas sem querer mesmo) —, uma forma variante pouco usada ou quase esquecida, iniciando involuntariamente discussões inócuas sobre sua correção e adequação.
Consultem-se sempre dicionários e vocabulários — se possível, mais de um.

ADENDO: Consultei as versões eletrônicas, disponíveis na Internet, dos dicionários portugueses Priberam e Porto e dos brasileiros Michaelis e Caldas Aulete (não tive acesso ao Houaiss nem ao Aurélio). Apenas o Aulete (obra de origem portuguesa, depois adaptada e muito ampliada no Brasil) corrobora o VOLP e registra a variante BENÇÃO, cuja entrada reproduzo abaixo:

benção
s.f. || forma antiga e popular de proferir bênção. Cp. bênção. F. lat. Benedictio, onis.

A forma BENÇÃO é, pois, no mínimo um arcaísmo, mas daqueles que ainda resistem na fala popular de certas regiões do País; daí o sabor regional e do “tempo do rei” que ainda conserva em nossos ouvidos. Quem nunca recebeu a BENÇÃO de uma pessoa mais velha?
E parece que, em contextos familiares, foi substituída por BENÇA, ficando a impressão de que nos meios populares se vê BENÇÃO como forma mais polida e solene.
Uma explicação para a sobrevivência dessa forma talvez seja sua analogia com os substantivos terminados em -ÃO, quase todos oxítonos. Exceções paroxítonas como ACÓRDÃO e ÓRGÃO são raríssimas; a forma paroxítona ZÂNGÃO foi há muito tempo posta de lado pela oxítona ZANGÃO, também correta.
Assim, mesmo que a forma usada na língua culta ou padrão seja BÊNÇÃO, o semiarcaísmo BENÇÃO ainda nos fará companhia por algum tempo, emergindo vez ou outra até sumir por completo — se é que sumirá algum dia. Como disse Câmara Cascudo: “O povo conhece seu vocabulário”.
Critiquem-se pessoas, mas respeitem-se os fatos linguísticos.

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Eufemismo

A mulher pediu ao motorista do ônibus:
— Por favor, quando chegarmos ao ponto, você pode parar o ônibus mais perto da calçada? É que ontem, quando eu desci, eu pisei na lama.
— Sim, senhora! É claro que sim.
— Obrigada!
Ouvi a conversa toda e fiquei surpreso.
Então a água servida, o ESGOTO que corre constantemente nas ruas de Santarém, expelido o tempo todo pela maior parte das casas, comércios e empresas da cidade, agora se chama LAMA?
Somos mesmo um país de eufemismos…