Vanitas vanitatum, omnia vanitas.
(Liber Ecclesiastes, I, 2)
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!” – diz o milenar livro hebraico do Qoheleth ou Eclesiastes, atribuído ao rei Salomão. O filho e sucessor de Davi, já entrado em anos, experiente e no fim da vida, enumera e condena toda a vaidade e os desenganos do mundo, e termina advertindo os homens para a importância do temor de Deus e observância de Seus preceitos (Eclesiastes XII, 13-14).
Mas nem todos concordam quanto aos reais motivos que levaram o sábio rei Salomão, identificado como o próprio (autor do) Eclesiastes, a clamar em palácio contra o orgulho do mundo: em seu romance A Cidade e as Serras, Eça de Queirós põe na boca da personagem Jacinto a explicação do porquê de Salomão se voltar, no fim da vida, à condenação da vaidade e dos prazeres:
Quando descobre esse sublime retórico que o mundo é ilusão e vaidade? Aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trêmulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se lhe torna ridiculamente supérfluo. Então rompem os pomposos queixumes! Tudo é vaidade e aflição de espírito! nada existe estável sob o Sol! Com efeito, meu bom Salomão, tudo passa – principalmente o poder de usar trezentas concubinas! Mas que se restitua a esse velho sultão asiático, besuntado de literatura, a sua virilidade – e onde se sumirá o lamento do Eclesiastes? Então voltará em segunda e triunfal edição, o êxtase do Livro dos Cantares!… (A Cidade e as Serras, capítulo IX.)
Um dos sete pecados capitais, classificados e descritos pela teologia católica na Idade Média – os outros são avareza, gula, inveja, ira, luxúria e preguiça –, dos quais fosse talvez o mais grave, a vaidade, também chamada orgulho ou soberba, parece ter perdido seu posto de primazia para a preguiça, pecado ou comportamento tão pouco aceito hoje, tempos de valorização do trabalho e do esforço, existindo inclusive cada vez mais pessoas viciadas em trabalho: workaholics.
Na Idade Média havia mesmo quem temesse ser considerado vaidoso por seu conhecimento das letras: literatos muito versados nos clássicos grego-latinos esforçavam-se para redigir em baixo latim, mais próximo dos falares populares românicos, ou mesmo nas línguas vernáculas que principiam a estabelecer-se, com o propósito de não serem tidos por orgulhosos de sua erudição, como conta o linguista Benvenuto Terracini, a certa altura de sua obra Conflictos de Lenguas y de Cultura (1).
Já o trabalho era visto como um mal necessário: é preciso trabalhar e alguém precisa fazê-lo. A sociedade medieval europeia era dividida em três grupos principais ou estamentos: o clero (os orantes), a nobreza (os militantes ou guerreiros) e a plebe (os laborantes ou trabalhadores), presa à terra e encarregada de produzir os necessários suprimentos para a sociedade, enquanto os nobres garantiam a segurança do feudo, do reino e da Cristandade e o clero cuidava das coisas do espírito e do bom comércio dos homens com Deus…
Nos dias atuais, porém, a vaidade – ou orgulho ou soberba – deixou de ser tida por comportamento condenável. Sob sua forma prática, o exibicionismo ou ostentação, é posta a público em todos os lugares e situações; nem a Igreja e seus fiéis escapam disso. Nos muros e na publicidade oficial de importante escola católica paraense era possível ler, até certo tempo atrás, a frase DÁ ORGULHO (?!), destacada e em letras garrafais, o que seria coisa de causar espécie a São Jerônimo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santa Clara ou qualquer outro santo, pai ou doutor da Igreja que, embarcado numa máquina do tempo, viesse parar em nossa época e visse tais dizeres na porta de um colégio confessional…
Seja como for, o assunto é bastante recorrente na literatura do Ocidente. No mundo lusófono, produziu um dos mais belos sonetos da língua portuguesa, atribuído ao poeta brasileiro Gregório de Matos Guerra (1636-1696), conhecido como Boca do Inferno:
Desenganos da Vida Humana, Metaforicamente
É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa:Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (2)
Este mesmo poema é também atribuído, com ligeiras variações, inclusive de título, ao padre português Antônio da Fonseca Soares (1631-1682), também conhecido como Frei Antônio das Chagas:
À vaidade do mundo
É a vaidade, Fábio, desta vida
Rosa que na manhã lisonjeada
Púrpuras mil com ambição coroada
Airosa rompe, arrasta presumida;É planta que de abril favorecida
Por mares de soberba desatada,
Florida galera empavesada,
Sulca ufana, navega destemida;É nau, enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de fénix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa.Mas ser planta, rosa e nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (3)
Este é apenas um dos exemplos da problemática ligada à obra de Gregório de Matos, que se apresenta como objeto de polêmicas, devido à dificuldade de indicar com precisão a autoria de parte dela. É algo que ocorre também com os poetas Luís Vaz de Camões e Manuel Maria du Bocage e com o escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Mas, como também dizem as Escrituras: “A quem tem, mais se lhe dará” (Mateus, XIII, 12). Portanto parece ser praxe atribuir a autoria questionável de um objeto a quem já tem muito em seu nome. E assim o catálogo das obras atribuídas a Gregório de Matos, Camões, Bocage e Aleijadinho só segue aumentando!
Coisas da vaidade do mundo…
Notas:
1- TERRACINI, Benvenuto. Conflictos de Lenguas y de Cultura. Buenos Aires: Imán, 1951.
2- In: SPINA, Segismundo. A Poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995. p. 108.
3- In: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/fchagas.htm (ortografia atualizada).