Ah, a riqueza da periferia…

Já decidi: na minha próxima encarnação quero nascer RICO! (RICA também serve. Ou RIQUE.) Não quero, porém, nascer rico nos EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Áustria, Japão, Coreia do Sul, Canadá, Suécia… Não! Nada disso! Quero nascer rico no Brasil. É muito melhor.

Mas também não quero nascer numa família rica de São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal… Os ricos desses lugares têm muitas preocupações e chateações: são o tempo todo chamados a responder sobre a responsabilidade social de sua riqueza, precisam expor suas medidas de ESG (está na moda), todo o País tem os olhos votados para eles. São os que mais aparecem nas colunas sociais e políticas. A vida deles é muito estressante. Sem falar no fato de que a burguesia dos grandes centros brasileiros recebe a culpa de todas as mazelas nacionais, mesmo daquelas das quais ela não tem culpa nenhuma.

Quero nascer rico num estado periférico e “pobre” do Brasil. Não citarei nomes, mas todos sabem quais são eles. É muito mais agradável e bem menos complicado ser rico nesses lugares.

Imaginem só: além de todas as benesses da riqueza e do poder, inclusive o acesso aos melhores cargos, eletivos ou não, os ricos e poderosos dos estados “pobres” não precisam preocupar-se com tomar decisões de impacto nacional, além de que sempre podem pôr a culpa da miséria, do atraso e do subdesenvolvimento local na ingerência do Governo Federal e na exploração por parte da burguesia de São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal… e até dos falidos Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Coitado do Espírito Santo, que por ser do Sudeste é levado de roldão também.

Não importa se as famílias ricas desses lugares “pobres” se alternam, há várias gerações, no governo das “províncias”; nunca é delas a culpa do péssimo transporte coletivo, da saúde precária e do esgoto que corre a céu aberto pelas ruas, lançado de casas ricas ou pobres. E, sempre que é convocado, o nacionalismo regional, também conhecido como bairrismo, garante o apoio do povão local à sua classe dirigente contra os exploradores de fora, de modo que qualquer favelado de São Paulo ou Rio de Janeiro se torna coopressor do resto do Brasil.

Por isso já decidi. Anote aí, produção: na próxima encarnação quero nascer na família Barulho, ou Sou Rei, ou Raposão, Já Esteve, Cheiros, Cavalo Canta, Tua Prima, Mexilhões, Viola, Nojeira, Matinho, Vintém, Cágado, Comes, Tu Que Sabes, Palheiros, Mamais, Obscena, Camarão, Vitela, Borrega, Farinha, Deslumbre… São muitas as opções, e deixo à produção a escolha. Não tenho objeção a nenhum estado. Seja qual for, será uma delícia.

Nada como nascer já destinado a ser governador, senador, deputado ou, no mínimo, prefeito de uma capital, ainda que seja num rincão distante do Brasil…

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Traumas regionais

“Os paulistas nunca superaram 1932” — disse recentemente um intelectual numa entrevista a um canal do YouTube. Concordo com ele, que completou: “É o único povo que comemora uma derrota”.
Já nisto ele está errado, pois não se trata de caso único ou isolado.
Os gaúchos também nunca superaram a derrota na Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos (1835-1845), que eles relembram anualmente todo dia 20 de setembro.
Os pernambucanos, por sua vez, talvez não tenham superado também o fim da Confederação do Equador (1824), liderada por eles, que foram punidos com a perda da Comarca do Sertão, desmembrada e cedida a Minas Gerais, e logo depois, definitivamente, à Bahia: é o enorme território baiano a oeste do rio São Francisco.
Estes não são os únicos exemplos do tipo na história do Brasil. Será que os paraenses já superaram o infame episódio da Adesão do Grão-Pará à Independência do Brasil, assinada em 15 de agosto de 1823 pelas lideranças políticas da província, sob a mira dos canhões de navios ancorados na baía do Guajará, os quais ameaçavam de bombardeio sua capital?
E os cariocas? Já superaram o trauma de o Rio de Janeiro ter deixado de ser a capital da República, de uma hora para outra e sem a necessária preparação e adaptação da cidade à sua nova condição? Mas os cariocas têm alguém em quem pôr a culpa: o goiano Toniquinho Soares, que num comício da campanha para presidente de 1955, em Jataí, perguntou (espontaneamente ou incitado?) a Juscelino Kubitschek se ele cumpriria a constituição e construiria a nova capital. Pego de surpresa (ou será que não?), JK se viu obrigado a responder que sim. Ali foi traçado o destino do Rio. JK venceu. Deu no que está dando… E nenhum paulista tem nada que ver com isso. 
Como nação ou em nível regional, nós brasileiros ainda temos muitos traumas para superar. Nossa jornada nunca foi fácil, e apontar os traumas e dificuldades de superação dos outros não ajuda em nada.
Glória no passado? Há controvérsias. Paz no futuro? Talvez, mas a depender do que começarmos a fazer agora.

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